22 maio 2006

NO REINO DE "BIBLOS" (6)- «Fahrenheit 451»,uma distopia tornada realidade?

“FAHRENHEIT 451”, Ray Bradbury


«Ray Bradbury nasce em 1920, em Waukegan, Illinois (EUA). Em 1939, em Los Angeles, funda uma pequena revista de ficção científica, juntamente com outros apaixonados do género. Começa a escrever contos, enviando-os para revistas especializadas que, frequentemente, os publicam.
Em 1950, publica o seu primeiro volume de contos, “Crónicas Marcianas”, que tem um grande sucesso, depois suplantado por “Fahrenheit 451” (1953). A partir dos anos sessenta, começa a trabalhar intensamente como argumentista cinematográfico, não abandonando, contudo, a literatura. Entre as suas numerosas obras, destacam-se: “O Homem Ilustrado” (1951), “Os Frutos Dourados do Sol” (1953), “O País de Outubro” (1955), “A Cidade Fantástica” (1957), “As Máquinas da Alegria” (1964), “Muito Depois da Meia-Noite” (1976), “A Morte é um Acto Solitário” (1984), “Memórias do Crime” (1984) e “Cemitério de Lunáticos”(1990).
O cosmos literário de Ray Bradbury parece pautar-se pela criação e busca incessante de universos paralelos ou alternativos ao que conhecemos. A sua apetência pela ficção científica e o facto de a sua formação académica não ter ido além do ensino secundário parecem ter feito dele uma espécie de génio autodidacta, adquire uma série de conhecimentos que lhe permitem reflectir sobre o que o rodeia, criando e imaginando sociedades e ambientes fantásticos.
O mundo dos anos 50 tinha ainda muito frescos na memória os horrores da Segunda Guerra Mundial, do Holocausto e das duas bombas atómicas lançadas sobre o Japão. O avanço tecnológico era já uma realidade e a televisão tornava-se, com sucesso, um entretenimento muito popular. É neste contexto que surge “Fahrenheit 451”. Cinquenta anos depois, esta obra de Bradbury parece fazer ressoar nas nossas mentes uma espécie de profecia, prestes a ser cumprida.
“Fahrenheit 451” é uma novela de ficção científica, e pode ser incluída no rol de narrativas distópicas contemporâneas. A primeira metade do século XX é muito fértil neste tipo de narrativa, que se caracteriza, (no essencial e tal como o nome indica), pela descrição de um lugar ou situação imaginários em que tudo é negativo, por oposição ao conceito de utopia.
(...)Em termos gerais, as narrativas utópicas tratam de modo optimista os temas da condição humana, do progresso e do futuro da Humanidade. No entanto, e citando Robert Elliott, “A utopia de uns é o pesadelo de outros”, pelo que são precisamente as características da utopia que engendram o seu oposto - a distopia.(...) É assim que surgem as amargas narrativas distópicas, como um grito de alerta para os perigos de um futuro mundo opressor, desolador e sem esperança, em que o interesse particular é inevitavelmente esmagado pelo interesse colectivo e em que as massas devoram o indivíduo. Como exemplos de outras narrativas distópicas do século XX, temos: “Nós” (1922), de Eugene Zamyatin, o “Admirável Mundo Novo” (1932), de Aldous Huxley, e “1984” (1948), de George Orwell.
A obra abre com uma curta explicação sobre o seu título. Numa frase, o autor explica que Fahrenheit 451 é “a “temperatura a que um livro se inflama e consome…”.
“Era um prazer muito especial ver as coisas arderem, vê-las calcinar-se e mudar”. É assim que nos é apresentado Guy Montag, um bombeiro que, em vez de apagar fogos, os ateia sobre livros e que desempenha esse papel com bastante prazer. O governo proíbe a posse e a leitura de livros, e uma nova tecnologia permite a construção de casas ”ignífugas” (à prova de fogo) - daí a nova função atribuída aos bombeiros. A acção decorre num futuro indeterminado, numa cidade situada algures nos Estados Unidos da América.
(...)“Fahrenheit 451” aborda de forma notável o potencial criador e ao mesmo tempo destruidor do homem para com o mundo que o rodeia e para com o seu semelhante. É sobretudo interessante acompanhar o percurso da personagem principal, Guy Montag.(...)Certa noite, ao regressar do trabalho, conhece Clarisse Mclellan, uma adolescente que é sua vizinha. Clarisse abre os olhos de Montag para um mundo totalmente novo. Além de ser considerada como anormal e louca pela sociedade, é também considerada “anti-social” pelo governo e proíbem-na de frequentar a escola. Fica intrigado com a personalidade da jovem, mas começa a gostar do seu olhar fresco e novo sobre o mundo, e a reexaminar a sua vida. Habitua-se à sua presença e às suas ideias, até que um dia ela não aparece, descobre, mais tarde, que ela tinha sido morta.
Montag revolta-se e começa a questionar os fundamentos da sua sociedade. Encontra-se com Faber, um professor de literatura reformado e procura uma forma de começar a espalhar livros. Vê-se forçado a confrontar o seu capitão Beatty, que tenta confundi-lo e pô-lo de novo do lado dos bombeiros, percebe que aquele sabe dos livros e vê-se forçado a fazer decisões sobre a sua vida, à medida que esta se desmorona, estrondosamente, à sua volta. Tudo isto tem como pano de fundo a ameaça de uma guerra nuclear iminente.
O cenário aqui desenhado é um dos mais inquietantes jamais concebidos pela ficção científica – sem seres alienígenas, naves espaciais ou armas mirabolantes, aquele mundo lívido e opressivo que deveria garantir o bem-estar universal assalta-nos como se pudesse, um dia destes, olhar para nós e envolver-nos na sua espiral de
controlo, perseguição e terror
.
O
controlo
é exercido por um governo que promove o entretenimento como forma de vida, anulando todo o apetite do espírito.
As pessoas não têm tempo para pensar, não conversam umas com as outras nem contactam com a natureza. Em vez disso, passam horas em frente à televisão, cuja programação, de tipo interactivo, é projectada nas paredes das casas; têm constantemente introduzida nos ouvidos uma espécie de micro rádios e conduzem carros a altas velocidades, nas auto-estradas, para descontracção.
É também promovido o desporto e todo o tipo de competições; proliferam as fitas desenhadas, os filmes, os “comic-books”, as revistas eróticas a três dimensões, os jornais corporativos. Os livros começam a ser resumidos gradualmente, até não restarem mais do que um punhado de linhas – desta forma nivelam-se os conteúdos e garante-se uma igualdade artificial, em que nenhuma minoria sinta os seus interesses ameaçados. Nas escolas, os alunos são submetidos a várias horas de programas televisivos “educativos”, intercalados com aulas de desporto e transcrições de história ou pintura; as pessoas tomam constantemente doses excessivas de comprimidos para dormir e há relatos de várias tentativas de suicídio.
Bombardeadas com tanta informação e tanta actividade inútil, mas que dão a falsa sensação de “movimento”, as pessoas, na realidade “apenas se arrastam”. Foram moldadas ao sistema, estão conformadas, não questionam nada, pois têm a falsa sensação de uma vida preenchida e feliz. Neste cenário, os livros deixaram espontaneamente de ter leitores – para quê atormentar o espírito com dúvidas existenciais, com assuntos filosóficos, com estudos sociológicos, com poesia melancólica, com romances cheios de personagens imaginárias que não existem na realidade? Os livros são vistos com fonte de sofrimento, pois obrigam a pensar e estão cheios de contradições - factos insuportáveis para um espírito habituado à mínima actividade autónoma possível, embriagado, numa espécie de hipnose colectiva. A personagem de Mildred, a mulher de Montag, e as suas amigas, encarnam na perfeição este cidadão-tipo, célula da grande massa anónima, que não questiona, não protesta, pelo contrário, está “feliz” com o actual estado de coisas.
A dada altura, é institucionalizada a proibição de possuir ou de ler livros. Entra em acção a
perseguição da “Vigília do Fogo”, cuja missão é “proteger o optimismo do nosso mundo actual.” Uma das ideias principais que a obra destaca é a da desintegração cultural da sociedade, o crescente desinteresse na ciência, na literatura e na filosofia – a combustão dos livros fica como uma metáfora poderosíssima desta degradação - “O fogo é brilhante, o fogo é limpo.” O fogo simboliza assim a morte da cultura.
O terror acaba por nascer nos corações das pessoas que conseguem conservar a sua lucidez, neste cenário de histeria colectiva – vislumbramos o terror de Clarisse quando descreve as actividades abomináveis dos seus concidadãos, vemos o terror nascer dentro de Montag, quando este decide não fazer mais parte da engrenagem, assistimos também ao terror estupidamente calmo que emana da personagem Helen – a mulher que se faz imolar pelo fogo, dentro da sua própria casa repleta de livros.
(...)Se o propósito do autor ao escrever esta obra era o de propor uma reflexão sobre o mundo em que vivia e alertar as gerações vindouras para os potenciais perigos de pessoas menos bem intencionadas subirem ao poder, manipulando os media e controlando as massas, tal foi magistralmente conseguido. É impossível lermos “Fahrenheit 451” e não traçarmos paralelos com o mundo em que vivemos hoje.
(...)Quanto à profética morte da cultura, materializada no desaparecimento dos livros, é exagerada. Embora existam, especialmente desde o aparecimento da
Internet, várias correntes que, qual arautos do mundo moderno, anunciam que os livros estão irremediavelmente condenados à extinção, o que é certo é que os novos meios tecnológicos têm contribuído para grandes avanços da liberdade de expressão, da participação do indivíduo no espaço público e da divulgação e transmissão de conhecimentos. Basta uma pequena pesquisa na Internet para ver a quantidade de sites
com qualidade, dedicados à literatura ou aos movimentos de cidadania, só para citar dois exemplos.»
(...)

FONTE:
Cláudia Silva, "Fahrenheit 451" - Recensão Crítica
http://iluminadas.weblog.com.pt/arquivo/2005/01/fahrenheit_451.html

NO REINO DE "BIBLOS"( 5) - Bücherverbrennung

BÜCHERVERBRENNUNG
A Queima de livros: 10 de Maio de 1933


Bücherverbrennung significa em Alemão literalmente queima de livros. É um termo muitas vezes associado à acção propagandística dos Nazis, organizada entre 10 de Maio e 21 de Junho de 1933, poucos meses depois da chegada ao poder de Adolf Hitler. Em várias cidades alemãs foram organizadas nesta data queimas de livros em praças públicas, com a presença da polícia, bombeiros e outras autoridades. Estudantes, em particular os estudantes membros das Verbindungen, membros das SA e SS participaram nestas queimas. A organização deste evento coube às associações de estudantes alemãs NSDStB e a ASTA, que com grande zelo competiram entre si tentando cada uma provar que era melhor do que a outra. Foram queimados cerca de 20.000 livros, a maioria dos quais pertencentes às bibliotecas públicas, de autores oficialmente tidos como "pouco alemães" (undeutsch).
Entre os livros queimados pelos Nazis contavam-se obras quer de autores falecidos como também contemporâneos, perseguidos pelo regime, muitos deles tendo emigrado. Na lista encontramos entre outros:
Thomas Mann, Heinrich Mann, Walter Benjamin, Bertold Brecht, Lion Feuchtwanger, Leonhard Frank, Erich Kästner (que anónimo assistia na multidão), Alfred Kerr, Robert Musil, Carl von Ossietzky, Erich Maria Remarque, Joseph Roth, Nelly Sachs, Ernst Toller, Kurt Tucholsky, Franz Werfel, Sigmund Freud, Karl Marx, Heinrich Heine,
Oskar Maria Graf não foi incluido na lista. Para seu espanto, os seus livros não foram banidos como até foram recomendados pelos Nazis. Em resposta, ele publicou um artigo entitulado "Verbrennt mich!" (queimem-me) no jornal "Wiener Arbeiterzeitung" (jornal do trabalhador vienense). Em 1934 o seu desejo foi tornado realidade e os seus livros foram também banidos pelos Nazis.
Em
Munique foi usada a Königsplatz, no dia 10 de Maio de 1933 . Em Berlim a Opernplatz.
FONTE:
Wikipedia: História da literatura/Nazismo

NO REINO DE "BIBLOS" (4) - A Inquisição

A INQUISIÇÃO
O "Index" - Os autos-de-Fé

No mundo cristão, a primeira notícia de uma queima de "livros proibidos" é-nos dada pelos Actos dos Apóstolos.

O sinal de partida estava dado. Durante a Antiguidade e na Idade Média foram condenadas várias doutrinas heréticas e os livros que as continham, tanto pelos papas como pelos concílios. Os livros reprovados não deviam ser lidos nem possuídos pelos cristãos: deviam ser queimados ou entregues à autoridade eclesiástica, e a partir do século XIV estas proibições foram suplementadas com a pena de excomunhão.

Os primeiros livros de que há memória a serem censurados em Portugal pelo poder régio foram as obras de John Wycliffe e de Jan Hus, proibidas e mandadas queimar por um Alvará de 18 de Agosto de 1451, por D. Afonso V.
Mais tarde, há notícia da repressão da divulgação de textos
luteranos por parte de D. Manuel, o que levou o papa Leão X a agradecer-lhe oficialmente em 20 de Agosto de 1521.

Com a instauração da Inquisição em Portugal pela bula Cum ad nihil magis, de 23 de Maio de 1536, proibia-se o ensino da religião judaica entre os "Cristãos-novos" (e entre o Cristãos-velhos, como é óbvio) e o uso das Sagradas Escrituras "em linguagem" (ou seja, em linguagem vulgar, em vez do latim). Passaram a existir três entidades censoras: censura do Santo Ofício, censura régia (ou do Desembargo do Paço) e censura do ordinário.
Os primeiros documentos que temos relativos à concessão de licenças para a impressão referem-se a obras de
Baltasar Dias (a 20 de Fevereiro de 1537) e à Cartinha, uma introdução à "Gramática" de João de Barros, em 1539.

Em 2 de Novembro de 1540, o cardeal D. Henrique, nomeado Inquisidor-mor por D. João III, dava ao Prior da Ordem de São Domingos a autoridade para verificar o tipo de livros vendidos em livrarias públicas ou privadas, além de proibir a impressão de qualquer livro sem examinação prévia. Até 1598, a revenda de livros foi, graças a esta medida, monopólio dos Dominicanos. Nesta data, contudo, o inquisidor-geral, D. António de Matos Noronha espalhou este privilégio por outras ordens clericais.
A
16 de Julho de 1547, a censura torna-se um pouco mais leve graças às directrizes apontadas na bula sobre a Inquisição, Meditatis cordis, mas aparece também o primeiro Index de livros proibidos em Portugal, na sequência do Quinto Concílio de Latrão (1515). A lista reproduz basicamente os livros banidos pela Sorbonne em 1544 e pela Universidade de Lovaina, em 1546.
Na sequência da descoberta pela Inquisição de livros proibidos na posse de professores estrangeiros do
Colégio das Artes, a vigilância sobre os livros alarga-se também para as alfândegas, que passam a verificar mais detalhadamente a ortodoxia dos livros que entram no país. A 4 de Julho de 1551 é publicado outro Índice, onde os censores portugueses, tal como Israel Salvador Revah indica em "La Censure Inquisitoriale Portugaise au XVI siècle" (1960), juntam às obras banidas pelos teólogos de Lovaina, os livros catalogados pelo erudito suíço Conrad Gesner na sua Bibliotheca Universalis, além de outras obras, entre as quais se contam sete autos de Gil Vicente. Este será o primeiro Índex português a ser impresso e que será divulgado em todo o território nacional pelos inquisidores que, de acordo com o Regimento da Santa Inquisição de 3 de Agosto de 1552, deveriam publicar editais, além de obrigarem à entrega de todos os livros indicados na lista, denunciando quem os possuísse.

D. João III, em 1555, dava um exemplo explícito do que deveria ser a Censura preventiva, ao encarregar o corregedor da Câmara do Porto da revisão do Tratado da Arte de Arismética, publicado nesse ano, da autoria do matemático português Bento Fernandes.
Em
1557, o papa Paulo IV, seguindo o exemplo da Universidade de Lovaina e das diligências de Carlos V, ordenou a criação do Índex romano, publicado no ano seguinte (e reeditado em Coimbra pelo bispo D. João Soares), onde se sentenciava à pena de excomunhão latae sententitae (que implicava excomunhão automática) e à "perpétua infâmia" quem possuísse tais livros. A severidade deste papa desencadeou uma onda de pânico entre os livreiros e intelectuais europeus. Portugal não foi excepção.
Em
1561, o dominicano Francisco Foreiro assinou um novo Índice, a pedido ainda do Cardeal D. Henrique que escreveu como preâmbulo uma carta em que, não sendo tão severo quanto o emanado pela Santa Sé, proclamava a necessidade de uma "Censura preventiva".
A
21 de Outubro de 1561, o inquisidor-mor definiu os deveres dos "visitadores das naus", que fariam a vistoria das obras trazidas do estrangeiro pelo mar.
Entretanto, a atitude censória em Portugal foi abertamente reconhecida pelo
papa Pio IV que chamou Frei Francisco Foreiro a secretariar a comissão do Concílio de Trento incumbida da revisão do Índex de Paulo IV.O frade português foi o principal autor das dez regras - que seriam posteriormente aplicadas a todo o mundo católico - que precediam o Índex saído do Concílio, promulgado em 1564 pelo papa Paulo V, bem como de todos os Índices que se sucederiam no futuro. O Índex tridentino foi publicado em Lisboa, no mesmo ano, juntamente com uma adenda designada por "Rol dos livros que neste Reino se proibem" - como se fará, de resto, nos seguintes Índices publicados em Portugal.
D. Sebastião, através de uma lei de 18 de Junho de 1571, também teve um papel importante na legislação portuguesa relativa à censura, ao definir as penas civis a aplicar a quem possuísse obras proibidas. Entre as sanções, há a citar desde a perda da quarta parte dos bens do infractor à perda de metade, acrescida da pena do exílio no Brasil ou em África. A pena de morte era igualmente contemplada. A 4 de Dezembro de 1576, tornou obrigatória a censura do Desembargo do Paço, mesmo após aprovação pela censura do Santo Ofício ou pela censura do ordinário.
Após a morte do Cardeal D. Henrique, há ainda a mencionar a decisão do inquisidor-mor
D. Jorge que, a 15 de Julho de 1579, ordena a queima pública de livros nos autos-de-fé.

Em 1581, D. Jorge de Almeida publica um novo Índex onde é reimpresso o documento tridentino de 1564.
O Regulamento do Conselho Geral do Santo Ofício de
1 de Março de 1570 estipulava que os inquisidores locais deixavam de ter autoridade no que dizia respeito à censura preventiva, que passou a ser da competência dos revendedores deste organismo.
O
papa Clemente VIII publicou, entretanto, o Índex de 1596, o último deste século, reimpresso em Lisboa no ano seguinte.
As Ordenações Filipinas de
1603, emanadas durante o reinado de Filipe II reafirmam a obrigatoriedade da censura preventiva civil, tal como tinha sido imposto por D. Sebastião.
Em 1624, o inquisidor-mor D.
Fernando Martins Mascarenhas fez sair no prelo, subscrito pelo jesuíta Baltasar Álvares, o primeiro Índex do século XVII, que tem a novidade de incluir novas orientações gerais - as regras do Catálogo de Portugal - além das que pertenciam ao Catálogo Universal Romano. O Índex era constituído, por isso, de três partes: o Índex tridentino, o Index pro Regnis Lusitaniae e uma secção (o primeiro Índice expurgatório português) dedicada às passagem a serem eliminadas de quaisquer livros sobre as Escrituras Sagradas, filosofia, teologia, ocultismo e mesmo ciência e literatura. Este Índex manter-se-ia em vigor até ao século XVIII.
Em
29 de Abril de 1722 há, contudo, uma excepção memorável (e única, tanto quanto se sabe) a este ciclo, com a isenção de qualquer tipo de censura, especialmente da censura inquisitorial) para a Real Academia de História, por um Decreto de 29 de Abril de 1722.
Com o regime liberal, a extinção da Inquisição em Portugal levou também, como é óbvio, à extinção da Censura Inquisitorial.

FONTES:
- António de Macedo,"Inquisição e Tradição Esotérica: Acção e Reacção no Colonialismo e Ex-Colonialismo do Império Português IV - As queimas de livros"
http://www.triplov.com/macedo/inquisitio/queimas_livros.htm
- Censura em Portugal/Wikipedia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Censura_em_Portugal

NO REINO DE "BIBLOS" (3)- "A Muralha e os Livros",Jorge Luís Borges

A MURALHA E OS LIVROS”, JORGE LUÍS BORGES

A prática de destruir livros perigosos ou apenas incómodos é muito antiga e foi partilhada por diversas civilizações e culturas.
«O oriente também se encontra envolvido na metaforologia do fogo. Jorge Luís Borges, o erudito escritor argentino que atravessou quase todo o século XX e abordou mais do que uma vez as conflagrações na sua obra, escreveu uma breve parábola dedicada ao tema – que seria agora escusado designar como heraclitiana, tal a sua evidência – do intercâmbio permanente entre as coisas e o fogo. Em “A muralha e os livros”, Borges parte de uma narrativa sobre o imperador chinês Shih Huang Ti, responsável quer pela ordem de construir a imensa muralha da China, quer pela de queimar todos os livros anteriores ao seu império, para sugerir uma meditação sobre o sentido desses dois actos – o de construir e o de incendiar – que, segundo a sua interpretação, se invalidam de modo imperceptível.
Sendo prerrogativa comum dos príncipes reduzir a cinzas livros e erigir fortificações, o imperador chinês só se terá distinguido pela escala gigantesca em que operou: queimar toda a memória escrita anterior ao seu domínio e cercar, não uma quinta ou um jardim, mas todo um vasto império. Na sua narrativa, Borges relata-nos que muitos dos que tentaram salvar livros, subtraindo-os ao fogo, foram pelo fogo marcados através de ferros em brasa e condenados a erguer até ao último dos seus dias a enorme muralha chinesa.
O escritor interroga-se então se a edificação da fortaleza não deve ser vista como uma metáfora ou um desafio. Tomada como metáfora, os que tentaram salvar os livros foram sujeitos à condição de Sísifo: por persistirem na luta contra o oblívio e pelo cultivo da memória, foram condenados, nas palavras de Borges, “a uma obra tão vasta como o passado, tão torpe e tão inútil”. Vista como desafio, amuralha manter-se-ia intacta até que viesse um outro imperador que a destruísse tal como Shih Huang Ti queimou os livros anteriores ao seu reinado; mas esse futuro príncipe, que assim apagaria a recordação do passado, seria afinal, sem que o saiba,apenas a sombra e o espelho do seu antecessor


In: "Media & Jornalismo", CIMJ, nº1, Ano 1, 2002, pp. 129-141.
"O Fogo e a Cultura Pan-Mediática Contemporânea", José Luís Garcia
http://www.ics.ul.pt/corpocientifico/joseluisgarcia/papers/fogo_media_jorn.pdf

21 maio 2006

NO REINO DE "BIBLOS" (2) - O Fim da Biblioteca de Alexandria

O FIM DA BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA

Durante uns sete séculos, a biblioteca de Alexandria reuniu o maior acervo de cultura e ciência que existiu na antigüidade, não se limitando a ser apenas um enorme depósito de rolos de papiro e de livros, mas tornando-se uma fonte de investigação para os homens de ciência e de letras que desbravassem o mundo do conhecimento e das emoções, deixando assim um notável legado para o desenvolvimento geral da humanidade.
Nos seus primeiros três séculos, da fundação à chegada de César, consta que as estantes, partindo dos 200 rolos iniciais do tempo de Filadelfo, chegaram a acomodar mais de 700 mil textos em volumes diversos.
No ano de 391, na época de grande intolerância religiosa de Teodósio o Grande, um cristão fundamentalista, o Bispo Teófilo, Patriarca de Alexandria, mobilizou os seus seguidores para a demolição do Templo de Serapium e da soberba biblioteca àquele anexa , que via como um depósito dos males do paganismo e do ateísmo
Não é possível dizer se em 642 d.C., data em que os árabes ocuparam a cidade, a Biblioteca e o Museu ainda existiam na sua forma clássica. Pensa-se que terá sido nesta época que os livros da biblioteca terão sido destruídos, pois eram contrários à fé do povo árabe. O Califa Omar terá ordenado ao Emir Amr Ibn Al que procedesse à destruição dos livros que não estivessem de acordo com o Corão, justificando a bárbara destruição com estas palavras: «Se os escritos dos Gregos concordam com as Sagradas Escrituras, não são necessários; se não concordam, são nocivos e devem ser destruídos».
A destruição da biblioteca de Alexandria é um acontecimento de consequências incalculáveis. Sepultando para sempre a esmagadora maioria das obras da Antiguidade clássica (por exemplo, das 800 peças de comédia grega apenas restam algumas obras de Plauto e Menandro), o incêndio da Biblioteca de Alexandria constitui um dos mais dramáticos acontecimentos de toda a História da cultura.
Como escreve Carl Sagan: “Existem lacunas na História da Humanidade que nunca poderemos vir a preencher. Sabemos, por exemplo, que um sacerdote caldeu chamado Berossus terá escrito uma História do Mundo em três volumes, na qual descrevia os acontecimentos desde a Criação até ao Dilúvio (período que ele calculava ser de 432 mil anos, cerca de cem vezes mais do que a cronologia do Antigo Testamento!). Que segredos poderíamos desvendar se pudéssemos ler aqueles rolos de papiro? Que mistérios sobre o passado da humanidade encerrariam os volumes desta biblioteca?”(1)
FONTE:

18 maio 2006

NO REINO DE "BIBLOS" - Biblos

BIBLOS


Biblos foi um dos principais centros culturais da Fenicia, antiga civilização semita originária da costa oriental do Mediterrâneo, correspondendo aproximadamente ao actual Líbano, que mais do que um país eram várias cidades-estado com governos independentes,de entre as quais Sidón e Tiro.(1)
O local foi povoado primeiramente duranto o período Neolítico, por volta de 5000 a.C. Segundo o filósofo e historiador Fílon de Alexandria, Biblos era famosa por ser a mais antiga cidade do mundo, sendo um foco de atracção para arqueólogos devido às camadas sucessivas de destroços resultantes de séculos de habitação humana.
Por volta de 1200 a.C., uma prova arqueológica de Biblos mostra aquilo que seria um alfabeto de vinte e dois caracteres; um exemplo importante destas inscrições é o sarcófago do rei Ahiram. (2)
Entreposto do comércio de papiro, os gregos importavam papel egípcio deste centro comercial a que deram o nome de “biblos”, que significava “livro” (escrito em papiro), sendo esta denominação mais recente do que a cidade em si, que originariamente levava o nome semítico de Gubla (em hebraico Gebal), a actual Djebail, situada na costa mediterrânica do actual Líbano, a 42 quilómetros de Beirute.
Aquele termo entra como elemento de formação de vários vocábulos da língua portuguesa, que exprimem a noção de "livro", tais como "bibliófilo", "bibliografia", "biblioteca", "bibliotecário", "bibliotecnia", "biblioteconomia" e muitos outros.

FONTES:
Enciclopédia Fundamental Verbo, vol.I pág.207; Editorial Verbo,1982.
Diccionário Enciclopédico Koogan Larousse Selecções, 4.ª reimpressão ,Julho de 1981,vol.2 pág.1035.
(1)http://pt.wickipedia.org/wiki/Biblos
(2)http://www.proel.org/alfabetos/biblos.html

17 maio 2006

CITAÇÃO- EXCITAÇÃO - INCITAÇÃO - LAMENTAÇÃO...


14.05.06
dn.homepage » dn.opiniao


Religião: promessas e ópio?
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia




«Entendo - ou julgo entender - as promessas a Nossa Senhora de Fátima, ao Santíssimo Sacramento, ao Senhor dos aflitos ou aos santos.

Habituadas a verem a sobrevivência, a saúde e a sua vida em geral dependentes de senhores e senhoras "omnipotentes", egoístas, arbitrários e tiranos, as pessoas atiram para cima de Deus todos esses atributos. Então, como diante dos senhores deste mundo se põem de joelhos, oferecem como presente o que lhes faz falta, metem cunhas - como é que os pobres chegam a uma operação no hospital sem uma cunha? -, também fazem promessas a Deus e a Nossa Senhora, andam de rastos, oferecem sacrifícios, na esperança de que talvez desse modo Deus e a Nossa Senhora se comovam e tenham compaixão.

Num diálogo com Óscar Lopes, em 1970, no Seminário da Boa Nova, Valadares, sobre a crise da fé, D. António Ferreira Gomes, cujo centenário do nascimento se comemorou no passado dia 10, deixou um pronunciamento polémico. Referindo-se à religião de Fátima, disse: "Sabemos que para baixo de Fátima ainda há todo o culto mágico que, tomado a sério, é uma ofensa profunda a Deus, porque na realidade a magia está a embotar o sentimento religioso do povo. A magia é uma vontade de encadear, de prender as forças sobrenaturais, consideradas mais como malignas do que como benéficas. Ora, isto, em relação à religião cristã, é a maior ofensa que se pode fazer a um Deus de bondade. Mas nós lidamos com isto, lidamos com a religião utilitária, do 'dou para que dês'. Eu prometo, eu faço uma promessa para que Deus me faça isto ou aquilo. Faço um negócio, um contrato. E para quê? Evidentemente, para a vida, para a saúde, para o dinheiro, para isto tudo. Ora, isto, com muita piedade e muita fé no nosso povo, isto não é religião cristã de forma nenhuma."

Já antes, no início da sua intervenção, o então bispo do Porto - voltar ao seu pensamento é homenageá-lo no melhor sentido - referira que tinha uma definição de fé que achava muito boa. Ela encontrava-se numa cartinha breve em que Óscar Lopes lhe dizia que a sua participação na Mesa-Redonda (houve outros participantes, como Luís Moita e Bento Domingues) seria "um depoimento na primeira pessoa do singular acerca daquilo que durante 50 anos julgo ter crido a partir dum fervoroso catolicismo de infância. Apenas desejaria descobrir o melhor de mim mesmo no melhor catolicismo de hoje, e contribuir para tudo aquilo que deveras nos transcende". D. António comentou: "Eu tenho para mim que quem procura pôr-se deveras em relação com aquilo que nos transcende está numa atitude religiosa." E, voltando-se para Óscar Lopes: "Desculpe, senhor doutor, se o ofendo." E Óscar Lopes: "De modo nenhum!"

D. António constatou: "Nós sabemos que a maior parte da nossa boa gente não transcende." E estava completamente de acordo com Óscar Lopes, ao referir a palavra de Marx sobre a religião, ópio do povo. "Segundo me pareceu, disse que Marx foi transformando um pouquinho o seu conceito, mas não penso que precisasse de reformá-lo, pois a religião é realmente muitas vezes ópio para o povo. A religião pode realmente ser ópio do povo. Não é uma palavra de insulto. Evidentemente, não é uma palavra ofensiva na medida em que se não refere ao cristianismo nem a Cristo que continua vivo no Espírito. Mas, repito, muitas vezes para o povo a religião no geral não significa nada de transcendente."

A atitude religiosa aparece, portanto, no movimento do transcender do homem para o transcendente. Onde se encontra então o que é próprio do cristianismo?

D. António afirmou que poderíamos adoptar a linguagem de Bonhoeffer, o teólogo protestante mártir do nazismo, e aceitar que o cristianismo não é religioso, na medida em que o Deus revelado em Cristo não serve para nos solucionar problemas insolúveis e os homens têm de arranjar-se autonomamente sem apelarem para Deus.

O Deus cristão não é ópio nem um deus ex machina com que se negoceia promessas. Ópio e promessas - isso é o religioso que está para baixo. "A religião cristã, entretanto, o limiar diferencial da religião cristã começa quando alguém se debruça sobre o outro, quando alguém se volta para o que o transcende, seja o outro neste mundo, seja Deus enquanto o Outro absoluto, sabendo que a relação ao Outro absoluto é exactamente também a relação ao irmão."

O amor a Deus e o amor ao próximo são um só e têm de exprimir-se também na política. "Nenhum homem responsável da Igreja poderá dizer que não quer saber de política ou que nada percebe de política."»

CITAÇÃO - EXCITAÇÃO - INCITAÇÃO - LAMENTAÇÃO...


PÚBLICO DOMINGO14MAI2006
OLHO VIVO

PADRES E LOBOS POLÍTICOS,
Eduardo Cintra Torres

«Pela primeira vez, a televisão portuguesa apresenta em simultâneo duas séries de ficção a partir de clássicos da literatura, "O Crime do Padre Amaro", de Eça de Queirós (SIC, sábados), e "Quando os Lobos Uivam", de Aquilino Ribeiro (RTP 1, sextas). Tendo em conta a aversão dos operadores em adaptar a literatura, em especial a que recrie ambientes do passado, estas transposições simultâneas no ecrã devem-se por inteiro à qualidade das obras originais. Distando 75 anos entre si, "O Crime" e os "Lobos" saíram das penas de dois expoentes do romance no período 1870-1960.
Antes de passar às adaptações, convém relê-los, não para entrar no dúbio jogo do ganha e perde, mas para ver o que atraiu os autores das versões televisivas. Eis a primeira constatação, tão óbvia que é mesmo preciso dizê-la: são dois romances com narrativas avalassadoras, personagens fortes e espirais de acção imbuída do seu tempo. As duas produções procuraram evitar o problema maior da ficção no cinema e na TV de hoje, o dos argumentos.
Segunda constatação: os grandes autores portugueses têm sido muito políticos na ficção.Estes dois romances são altamente politizados, são motivados por questões políticas (se consideramos que "a questão religiosa" na segunda metade de oitocentos se inscrevia totalmente na política).
Grande número de novelas e romances de Eça, Camilo e outros autores do mesmo período literário e do seguinte (Teixeira de Queirós, Abel Botelho, Carlos Malheiro Dias, Forjaz de Sampaio, Branquinho da Fonseca, Manuel Ribeiro, Ferreira de Castro, Rodrigues Miguéis)tratam directamente de grandes questões políticas ou sociais. O mesmo sucede com obras da segunda metade do século XX e já do presente século, de Cardoso Pires, Agustina, Lobo Antunes ou Saramago, autores que, ao contrário de outros, não se perderam no labirinto dos seus "selves".
(...)O "Padre Amaro" trata da questão religiosa numa época em que o catolicismo era religião de Estado, do peso asfixiante da igreja numa cidade de província, da hipocrisia da beatice, do oportunismo do mau clero.
(...)A vida política dos anos 70 atravessa o romance. Eça não poupa a Regeneração nem os opositores socialistas. No final, Amaro, esquecido já o seu crime perfeito, goza uma tarde maravilhosa no Chiado - e Paris a ferro e fogo com a Comuna. Neste romance, Portugal não tem solução.
Aquilino, 75 anos depois, como que diz o mesmo nos "Lobos". Surpreende neles a forte dimensão política, a denúncia das prepotências do Estado, a corrupçãozinha, o obscurantismo da pide, o servilismo político do sistema judicial. Tal como o "Padre", os "Lobos" não são um romance sobre a política, mas ela perpassa-os.»

15 maio 2006

AD PERPETUAM REI MEMORIAM - Humberto Delgado


HUMBERTO DELGADO
«O INFELIZ AMOR DE SÓROR MARIANA»

Nesta data em que se completam cem anos sobre o nascimento de Humberto Delgado, "O General Sem Medo", sobre o qual tanto se escreveu, no que toca à sua trajectória política, em especial o fenómeno, que abalou a sociedade portuguesa da época, da sua candidatura às eleições presidenciais de 1958, vimos relembrar uma outra sua faceta, a de escritor.

Solidário numa primeira fase com a designada Revolução Nacional, na sequência do golpe militar de 1926, é da sua autoria uma peça de teatro radiofónico (1939) intitulada «28 de Maio», da qual ofereceu um volume a Salazar, com dedicatória de seu punho e letra em que designa o Presidente do Conselho como “cúpula da palpitação revolucionária e patriótica do Povo Português”.
Além de obras respeitantes a assuntos de índole militar,em particular relacionados com a Força Aérea,é também autor de diversas peças de teatro,como «A Marcha para as Índias»(1940), «Mariana Alcoforado, a freira de Beja» (1940) e «Asas» (1942).

Já no seu exílio no Brasil, publicou (1964) «O Infeliz Amor de Sóror Mariana», sob a chancela da Editôra Civilização Brasileira S.A., do Rio de Janeiro, obra que inclui a história dos amores e das cartas da famosa freira de Beja, o texto francês e a traduçaõ portuguesa dessa obra-prima da literatura europeia do século XVII, a grafanálise de um documento do punho de Sóror Mariana, e a peça de teatro radiofónico escrita pelo autor.
Quis o acaso que se nos deparasse numa banca de alfarrabista a referida edição brasileira, apesar da sua relativa raridade(1).
Nas dobras das respectivas capas, consta uma breve apresentação crítica, subscrita pelo director editorial Mário da Silva Brito, de que não resistimos a efectuar a transcrição (mantendo, todavia, a ortografia original):


"Um general que dá exemplo de amor à cultura
Humberto Delgado foi candidato à Presidência da República Portuguêsa, tendo sido "derrotado" em virtude das fraudes inerentes ao sistema eleitoral salazarista.
Pouco tempo depois, sentindo-se inseguro em sua liberdade e até em perigo de vida, buscou asilo na Embaixada do Brasil, criando então o famoso "affaire" diplomático em que se houve com tanta dignidade e altanaria o escritor Álvaro Lins, na ocasião nosso Embaixador junto ao govêrno de Portugal (2).
Êsse o Humberto DELGADO conhecido pela generalidade das pessoas. Sua atividade política e, especialmente, sua luta pelo restabelecimento das franquias democráticas em sua pátria, tornaram-no nome de fama internacional e, mais do que isso, símbolo do movimento libertador do povo português.
Mas além de General da Fôrça Aérea, homem de ação de rara bravura, e de espírito preocupado com os problemas humanos e o progresso social, Humberto DELGADO é escritor de vasta bibliografia, destacando-se como autor de peças teatrais, de textos para declamação radiofônica e diversos e importantes trabalhos de literatura militar, notadamente sôbre tática e estratégia.
Mesmo quando aborda assunto aparentemente gratuito, de mera literatura ou erudição -como é o caso dêste livro O Infeliz Amor de Sóror Mariana - está presente o intelectual engajado, o escritor que zela pelos valôres artísticos de sua terra, o homam atualizado com as grandes e generosas coordenadas do pensamento moderno, que permitem analisar temas e problemas em têrmos de amplitude, banindo-se os ângulos mesquinhos ou estreitos.
Complexo é o trabalho de Humberto DELGADO neste livro. Estuda êle o problema da autoria das cartas que uma religiosa portuguêsa - Mariana Alcoforado - dirigiu ao oficial francês, Cavaleiro de Chamilly, que, após ter sido seu amante, aproveitando-se de sua fraqueza de mulher, abandonou-a deixando-a entregue ao sofrimento e exposta aos rigores da moral farisaica.
Adota o ensaísta a tese clássica, luso-francesa, de ser a Freira de Beja a escritora das cartas. Rebate, assim, os argumentos dos que pretendem apontar outros autores, e de outra nacionalidade, com isso lesando o patrimônio cultural português, que tem, nas cartas de Sóror Mariana, uma das mais belas e significativas obras da literatura do século XVII.
Discute ainda - e pulveriza-as - as objeções reacionárias e tartufas que, em nome de preconceitos morais, religiosos, políticos e aristocráticos, põem em dúvida a autenticidade das cartas, o portuguesismo de sua contextura estilística, e, inclusivé, a existência da autora. Faz mais o polemista Humberto DELGADO: em página rica de informações e de crítica, disseca a situação da mulher mo evolver da sociedade e demonstra, apoiado em argumentos históricos, a sujeição e a submissão que lhe tem sido imposta em nome de uma moral hipócrita e atrasada.
Êste fascinante livro do político e militar português, revela o seu acendrado amor às coisas do espírito e da cultura, o patriotismo e a largueza de idéias que informam a sua personalidade de intelectual. São qualidades que merecem sempre ser realçadas. Mais: exalçadas. São mesmo edificantes e oxalá inspirem a outros políticos e militares igual respeito e aprêço pelos valôres éticos, culturais e civilizadores de suas pátrias e povos
."


(1) Durante o seu exílio no Brasil, o General Humberto Delgado escreveu uma peça de teatro, que publicou com um pormenorizado estudo, em 1964, sob o título O Infeliz Amor de Soror Mariana . Esta obra reveladora da sensibilidade do “General Sem Medo” é hoje de difícil acesso, tendo-nos sido facultada por Leonel Borrela, coleccionador “Alcoforadino” de Beja , a quem agradecemos.
«Mariana Alcoforado e o‘Amor Português’ na Ficção Actual em Língua Inglesa»,Luísa Alves(F.C.S.H. – U.N.L.)
www.fcsh.unl.pt/congressoceap/Mariana_luisaalves.doc

(2) Vide «Missão em Portugal», Álvaro Lins; Centro do Livro Brasileiro, Lisboa, 1974.

12 maio 2006

AD PERPETUAM REI MEMORIAM - Fátima

REFLECTINDO ÀCERCA DE FÁTIMA:
OUTRAS INTERPRETAÇÕES


Para além da abundante literatura fatimista publicada com o Imprimatur das autoridades eclesiásticas, nomeadamente da Diocese de Leiria, outras obras existem que procuram analisar o fenómeno sob um ponto de vista racionalista, sendo algumas mesmo da autoria de elementos do clero.
Sem pretendermos tomar partido numa questão de índole naturalmente polémica, aqui deixamos uma breve bibliografia, sugerindo aos espíritos mais inconformistas algumas pistas de reflexão relativamente a um dos temas que marcaram a sociedade portuguesa nas últimas nove décadas.

Alfaric, Prosper: "A FABRICAÇÃO DE FÁTIMA", tradução de Alberto Sousa Meireles; Edições Delfos, Temas 2000, N.º9, s/data

Fonseca, Tomás: "FÁTIMA (Cartas ao Cardeal Patriarca de Lisboa)" ; Editora Germinal, Rio de Janeiro, 1955.

Fonseca, Tomás: "NA COVA DOS LEÕES", Edição destinada ao Brasil, Lisboa, 1958.

Ilharco, João: "FÁTIMA DESMASCARADA A Verdade Histórica Acerca de Fátima Documentada Com Provas", Coimbra, 1971.

Miguéis, José Rodrigues: "O MILAGRE Segundo SALOMÉ", Estúdios Cor,S.A.R.L.,
Lisboa, 1974.

Oliveira, Padre Mário de : "FÁTIMA NUNCA MAIS", Campo das Letras-Editores S.A., Porto, 1999.

Sarmento, Ernesto: "FÁTIMA FINALMENTE DESMASCARADA", Coimbra, 1988.

Torgal, Luís Filipe: "AS APARIÇÕES DE FÁTIMA Imagens e Representações (1917-1939)",Temas e Debates - Actividades Editoriais,Lda., Lisboa,2002.

10 maio 2006

AD PERPETUAM REI MEMORIAM - Bispo do Porto

Efeméride

D.António Ferreira Gomes,Bispo do Porto(10-05-1906;13-04-1989)

Tendo conhecido a luz do dia a 10 de Maio de 1906, na freguesia de Milhundos, concelho de Penafiel, filho de Manuel Ferreira Gomes e de Albina R. de Jesus Ferreira Gomes, completam-se,portanto, hoje,cem anos sobre a data do seu nascimento.
Em 1916 começou o curso de preparatórios do Seminário do Porto onde, em 1925, concluiu o Curso Teológico. Rumou para Roma e aí se doutorou em Filosofia na Universidade Gregoriana. D. António de Castro Meireles ordenou-o presbítero em 22 de Setembro de 1928. No ano seguinte foi nomeado professor (e depois também desempenhou funções de prefeito, vice-reitor e reitor) no Seminário de Vilar, no Porto, onde seu tio, cónego, era reitor e a quem sucedeu no cargo. Nomeado, em 1936, cónego capitular da Sé do Porto (com 30 anos, portanto), exerceu ainda, nesta cidade, as funções de assistente da Liga Católica Masculina e da Liga Universitária Católica (Secção de Engenharia).
Em 15 de Janeiro de 1948 foi eleito bispo titular de Rando e coadjutor, com futura sucessão, do bispo de Portalegre de então, D. Domingos Maria Frutuoso, a quem sucedeu, por morte deste em 1949, apesar de desempenhar já o governo efectivo da diocese desde a sua entrada.
A 12 de Outubro de 1952 fez a entrada solene na Sé do Porto como seu bispo da qual tinha tomado posse por procuração a 14 de Setembro depois da sua transferência efectiva para aí ocorrida a 13 de Julho do mesmo ano.
Coincidindo com a campanha da candidatura presidencial de Humberto Delgado, em 1958, e, no exercício do magistério episcopal e em defesa da doutrina social da Igreja Católica, teve a coragem frontal de, numa carta dirigida a Salazar (então, chefe do Governo), tecer críticas contundentes relativas à situação político-social e religiosa do País, o que lhe veio a acarretar o exílio.
Durante o exílio teve residência em Espanha, República Federal Alemã e França, sendo nomeado pelo Papa João XXIII membro da Comissão Pontifícia de Estudos Ecuménicos para a preparação do Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965. Neste concílio (o 21.º concílio ecuménico da Igreja Católica) teve intervenções sobre a nomeação dos bispos (em 7 de Novembro de 1963) e sobre Ecumenismo (13 dias depois), respectivamente nas 62.ª e 71.ª Congregações Gerais do Concílio.
Após o afastamento político do ditador Salazar (ocorrido em 1968), e no seguimento da denominada primavera marcelista, regressou a Portugal em 18 de Junho de 1969, dez anos após o começo do exílio, tendo retomado o governo da diocese portucalense onde procedeu a uma ampla e dinâmica reestruturação. Tendo sido o fundador do semanário Voz Portucalense e do boletim Igreja Portucalense foi também, nos anos 70 do século passado, responsável pela criação da Secção Diocesana da Comissão Pontifícia "Justiça e Paz" e pela instituição do Gabinete de Opinião Pública.
A 23 de Setembro de 1978, cinquenta anos após a sua ordenação sacerdotal, tiveram começo as comemorações das suas bodas de ouro sacerdotais. O pedido de resignação da diocese formulado nos princípios de 1981 foi atendido pela Santa Sé a 18 de Fevereiro do ano seguinte, tendo cessado funções a 2 de Maio do mesmo ano de 1982, com perto de 35 anos de episcopado. Procurando anonimato em recolhimento e estudo, acabou por retirar-se para uma casa diocesana em Ermesinde.
Foi galardoado com a Grã-Cruz da Ordem de Liberdade (logo em 1976) e da Ordem Militar de Cristo (em 1983) depois de, em 12 de Maio de 1982, ter sido alvo de um voto de homenagem aprovado pela Assembleia da República que evocou e elogiou a sua personalidade.
Por testamento de 21 de Agosto de 1977 criou a Fundação Spes, « instituição de natureza perpétua, de fins benéficos, educativos e culturais sob inspiração cristã» cuja acção «desenvolver-se-á em toda a Diocese portucalense, com preferência para as cidades do Porto e Penafiel, Vila Nova de Gaia e seus termos» e «os fins educativos e culturais da Fundação Spes orientar-se-ão sobretudo para a formação e desenvolvimento intelectual dos adultos que se queiram cristãos, e designadamente para os estratos mais cultos e responsáveis».
Além de colaboração diversa no diário Comércio do Porto, Voz do Pastor, Novidades e nos órgãos de comunicação social que criou, publicou,entre outras obras: Herói e Santo (teatro, sob o pseudónimo de G. Penafiel), Pastoral de Despedida da Diocese de Portalegre, Pastoral da Saudação ao Clero do Porto, Discurso de Homenagem ao Cónego Correia Pinto, Alocução do Centenário de D. António Barroso, Evocação dos Antigos Bispos do Porto, Discurso na Passagem do duplo aniversário de Pio XII, A Igreja e o Corporativismo, A Miséria Imerecida do Nosso Mundo Rural (Conferência), O Serviço Social e os Seus Problemas, A Igreja e os Problemas da Instrução e Cultura em Portugal, O Espírito de Roma ou o Espírito de Genebra, Ecumenismo ou Humanismo (Conferência), A Missão dos Intelectuais Católicos, Endireitai as Veredas do Senhor, Ministério Sacerdotal e a sua Renovação,Paz em Portugal pela Reconciliação entre os Portugueses, A Igreja Pós- Conciliar, Paz da Vitória ou Paz da Justiça?, A Paz Depende de Ti, Ecumenismo e Direitos do Homem na Tradição Antiga Portuguesa, Bater a Penitência no Peito dos Outros, Rearmamento Moral e Desmilitarização e A Sociedade e o Trabalho: Democracia, Sindicalismo, Justiça e Paz.
«De joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens» - foi este o lema bíblico de S. Paulo que norteou o seu episcopado.
Faleceu no dia 13 de Abril de 1989,encontrando-se sepultado no cemitério paroquial da freguesia de Milhundos. A sepultura é encimada por uma cruz, tendo no centro uma rosa, símbolo da aspiração cristã da Beleza e do Amor (como fez questão de determinar no artigo décimo do seu testamento).

Bibliografia:
Diciopédia 2001, Porto Editora.
Fundação Spes, 1995.
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vols n.º39 e 5 (actualização), Editorial Enciclopédia Limitada, Lisboa, s/d.

Carta a Salazar

Não é uma carta, muito menos uma "carta aberta". Como sempre disse o Bispo do Porto, trata-se dum "pró-memória" para uma entrevista com o então Presidente do Conselho, em que se enumeram os temas a ser ventilados nesse encontro, que aliás nunca veio a realizar-se.
Esse documento, datado de 13 de Julho de 1958, só pode ser plenamente compreendido se visto à luz da época em que surgiu. Vivia-se em Portugal um clima de movimentação política ocasionada pelas eleições presidenciais de 1958, expressamente referidas na"carta".
O texto é um documento de uma época e das preocupações dum homem da Igreja face aos problemas que ela levanta, importando realçar alguns aspectos:
- é a primeira vez que uma voz da Igreja questiona o corporativismo, tido então como doutrina oficial do regime;
- a novidade de propor não só que os frutos do trabalho comum sejam divididos "com equidade e justiça social entre os membros da comunidade", mas particularmente que o indivíduo deve ter "a justa quota-parte na condução da vida colectiva";
- a afirmação, peremptória, de que o direito de greve, considerado um crime por Salazar, é defendido pela doutrina da Igreja;
-a defesa do sindicalismo livre e não tutelado pelo Estado corporativo;
-a coragem de se falar da criação de partidos, quando se vivia sob a lei do partido único, a União Nacional.
Na época não se suscitava, ainda, a questão colonial - o eclodir da revolta em Angola só se verificaria em 1961(1).
Não obstante não haver o seu Autor desejado nem promovido a difusão do documento em causa, esta veio a ocorrer amplamente, quer pelo aproveitamento que as forças oposicionistas daquele vieram a fazer, quer por parte da própria polícia política e elementos afectos ao regime num clima de hostilidade alimentado por certa imprensa(2) e por campanhas promovidas por gente como Manuel Anselmo com o seu panfleto "Sobre a Declaração de Voto de Sua Ex.cia Reverendíssima o Senhor Bispo do Porto"(3).
D.António partiu para férias no estrangeiro no dia 24 de Julho de 1959.
Salazar nunca mais permitiu o seu regresso ao País.Diga-se, em abono da verdade e como exemplo da seriedade de quem nos governou, que também não teve a coragem de exarar por escrito essa proibição!
Como diz José Geraldes Freire in "Resistência Católica ao Salazarismo-Marcelismo", "o bispo do Porto,sem decreto de exílio, andou exilado pela Espanha, Alemanha, França e Itália". Viveu ainda algum tempo em Alba de Tormes, onde aguardou o regresso a Portugal. Tinham decorrido dez longos anos. Estava-se em 1969.
FONTE:
Prólogo de Fernando Ferreira Gomes,"CARTA A SALAZAR",D.António Ferreira Gomes; Edições do Tâmega,Amarante,1993.
(1)Vide,"Carta ao Bispo do Porto(o caso da Índia)",RUY LUÍS GOMES
(2)"Direcção Perigosa!(Reflexos da carta do Senhor Bispo do Porto)Separata dos artigos publicados no jornal A Voz,nos dias 12,13,14,15 e 16 de Março de 1959. I Parte O Caso em Si II Parte O Caso Perante a Concordata e a Doutrina da Igreja Em Apêndice Ignorância ou Má Fé?
(3)"Uma «Carta Vermelha» do Senhor Bispo do Porto? (Críticas ao livro de Manuel Anselmo «Sobre a declaração de voto de Sua Ex.ª Reverendíssima o Senhor Bispo do Porto»)", Joaquim Faria, s/data e indicação da edição ,provavelmente clandestino.
Carta ao Cardeal Cerejeira
A 16 de Julho de 1968 - dez anos, quase dia por dia, depois de ter enviado a Salazar o famoso memorando - D.António escreveria do exílio, de Lourdes, nova longa carta, endereçada desta vez ao Cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Não hesitamos em julgar esta carta também histórica, embora as suas repercussões públicas na época tivessem sido muito escassas.
Se, na carta a Salazar, D.António Ferreira Gomes enunciara com coragem a sua posição crítica perante o regime autoritário, sem se embrenhar todavia demasiado na análise daquilo que então qualificou de «terrível comprometimento» da Igreja com esse regime, na carta a Cerejeira, pelo contrário, interpela sem mercê o «chefe da Igreja portuguesa», desmascarando o seu alegado não empenhamento político, lembrando-lhe as suas convicções e afinidades ideológicas de sempre, o seu íntimo relacionamento com o ditador, as suas responsabilidades concretas no desenrolar do «caso do Bispo do Porto», fazendo, em suma, uma denúncia - veemente, embora longe de exaustiva - do enfeudamento da Igreja hierárquica ao regime de Salazar.
Quando o Bispo do Porto, em Lourdes, pegava na caneta para escrever ao Presidente da Conferência Episcopal(1), em Portugal, Salazar e Cerejeira continuavam aparentemente firmes nos seus postos, um no 40.º ano de governo ( 36 de chefia), o outro no 39.º de patriarcado.
Ao longo de várias dezenas de páginas da carta que nesse dia dirige ao Cardeal Cerejeira, o Bispo do Porto descarrega o que lhe vai pela alma e durante muito tempo calara. Com 62 anos de idade e já 9 de exílio, D.António Ferreira Gomes não disfarça o seu ressentimento e usa duma frontalidade que raia a violência. Parece deliberadamente destinado a chocar o tom livre, por vezes sarcástico, desta carta - uma carta aberta ou semiaberta não nos esqueçamos - ao festejado «Príncipe» da Igreja Portuguesa, que completava 80 anos dali a meses. Ninguém ousara jamais falar de modo tão acrimonioso ao Cardeal Cerejeira, diante de cuja inteligência, cordialidade e aura paternal até alguns padres contestários acabavam por se submeter, ofuscados, rendidos ou intimidados. Mas D.António Ferreira Gomes tem claramente uma noção mais terrena da estatura de Sua Eminência.
Saber-se-ia muito mais tarde pelo próprio D.António Ferreira Gomes, através duma evocação solitária que fez da presente carta em entrevista a um jornal, que Cerejeira terá ficado tão «ofendido» com as «verdades» que leu que nem se dignou acusar recepção(2).
Dali a perto de um mês, um acidente doméstico tornaria Salazar inválido e agitaria, enfim, as estagnadas águas da política portuguesa - resultando a prazo, entre outras coisas, no regresso de D.António Ferreira Gomes ao seu País e à sua Diocese.
(1)A carta é endereçada a Cerejeira na sua qualidade de presidente da Conferência Episcopal, a pretexto duma diligência oficial que o Bispo cumpre logo nas primeiras linhas. Sem isso, a carta poderia ter sido classificada como pessoal. Ambiguidade propositada de D.António, para assim impedir o Cardeal Cerejeira de silenciar perante o episcopado a recepção da sua carta?
(2)A entrevista, conduzida por António Cadavez, foi publicada no Diário de Notícias de 16 de Fevereiro de 1987. Esta evocação da carta de 16 de Julho de 1968, nos termos em que é feita, prova, a nosso ver, que D.António não estava em 1987 nada arrependido de a ter escrito.
FONTE:
"CARTA AO CARDEAL CEREJEIRA 16 de Julho de 1968",D.António Ferreira Gomes, Bispo de Porto - Introdução e notas de José Barreto; Publicações D.Quixote, Lisboa, 1996.
Outra Bibliografia
"relações igreja-estado", entrevista com o Bispo do Porto - Raúl Rego, João Gomes; Cadernos República, 1973.
"Bispo do Porto Abriu o Diálogo - EM DIÁLOGO Pastoral Operária Bispo do Porto P.e Chenu"; Prefácio do P. Jardim Gonçalves. EDOC-Edições Operário-Cristãs Col. Horizonte Aberto, s/data.
"Considerações dum Católico sobre o período eleitoral" pelo Eng. Francisco Lino Netto do Centro de Informação Católica; Lisboa, Junho de 1958, s/indicação da impressão, provavelmente clandestino.
"Para Um Diálogo com o Sr.Cardeal Patriarca", Raúl Rego, Edição do Autor, Lisboa-1968.

Um Espírito Inquieto:
"Cartas ao Papa"
Aos 75 anos, pediu, como manda a lei canónica, a resignação, indo viver para Ermesinde. Foi aí que escreveu as célebres Cartas ao Papa João Paulo II, o mesmo que, na sua visita ao Porto, ao receber os cumprimentosde despedida do já bispo resignatário, exclamou:"Ah,o famoso bispo do Porto!"
Nas cartas, refere o episódio e escreve:"Bispo famoso, talvez: de boas e más famas... Na Cúria Vaticana e na Diplomacia Pontifícia, com bela e notáveis excepções, antes más que boas famas". E aí estava mais uma razão para escrever as cartas: lembrar certas coisas do passado e corrigir certas más famas.
Se "o homem não tem liberdade, pois ele é uma liberdade". D.António era agora um homem ainda mais livre, já que "o ser resignatário tira ao bispo certos direitos mas liberta-o das servidões resultantes do ministério
e magistério episcopais".
(...)Mas D.António Ferreira Gomes não se limitou a reflectir sobre alguns desígnios fundamentais do Concílio Vaticano II.
Ousou tocar questões melindrosas. A título de exemplo: dever-se-ia reflectir sobre a actual disciplina da Igreja no tocante à confissão auricular - "Santo Agostinho nunca se confessou" - bem como repensar o processo da canonização dos santos; quanto à diplomacia eclesiástica, lembrando a transparência do Evangelho - seja a vossa palavra sim, sim, e não, não -, a norma desejável seria: "Tanta diplomacia quanta seja necessária ou útil e tão pouca quanta seja possível"; a reforma da Cúria "será baldada se não incluir o desaparecimento da função cardinalícia"; o que se passou no caso do novo Estatuto da Opus Dei foi "um dos factos mais graves da História da Igreja" e dos mais infelizes.
As "Cartas ao Papa" João Paulo II não tiveram resposta.
Anselmo Borges,Padre e professor de Filosofia;in "Diário de Notícias", Domingo, 7. Maio. 2006, página 9, Opinião.

05 maio 2006

Capa da edição brasileira de"QUANDO OS LOBOS UIVAM"