10 maio 2006

AD PERPETUAM REI MEMORIAM - Bispo do Porto

Efeméride

D.António Ferreira Gomes,Bispo do Porto(10-05-1906;13-04-1989)

Tendo conhecido a luz do dia a 10 de Maio de 1906, na freguesia de Milhundos, concelho de Penafiel, filho de Manuel Ferreira Gomes e de Albina R. de Jesus Ferreira Gomes, completam-se,portanto, hoje,cem anos sobre a data do seu nascimento.
Em 1916 começou o curso de preparatórios do Seminário do Porto onde, em 1925, concluiu o Curso Teológico. Rumou para Roma e aí se doutorou em Filosofia na Universidade Gregoriana. D. António de Castro Meireles ordenou-o presbítero em 22 de Setembro de 1928. No ano seguinte foi nomeado professor (e depois também desempenhou funções de prefeito, vice-reitor e reitor) no Seminário de Vilar, no Porto, onde seu tio, cónego, era reitor e a quem sucedeu no cargo. Nomeado, em 1936, cónego capitular da Sé do Porto (com 30 anos, portanto), exerceu ainda, nesta cidade, as funções de assistente da Liga Católica Masculina e da Liga Universitária Católica (Secção de Engenharia).
Em 15 de Janeiro de 1948 foi eleito bispo titular de Rando e coadjutor, com futura sucessão, do bispo de Portalegre de então, D. Domingos Maria Frutuoso, a quem sucedeu, por morte deste em 1949, apesar de desempenhar já o governo efectivo da diocese desde a sua entrada.
A 12 de Outubro de 1952 fez a entrada solene na Sé do Porto como seu bispo da qual tinha tomado posse por procuração a 14 de Setembro depois da sua transferência efectiva para aí ocorrida a 13 de Julho do mesmo ano.
Coincidindo com a campanha da candidatura presidencial de Humberto Delgado, em 1958, e, no exercício do magistério episcopal e em defesa da doutrina social da Igreja Católica, teve a coragem frontal de, numa carta dirigida a Salazar (então, chefe do Governo), tecer críticas contundentes relativas à situação político-social e religiosa do País, o que lhe veio a acarretar o exílio.
Durante o exílio teve residência em Espanha, República Federal Alemã e França, sendo nomeado pelo Papa João XXIII membro da Comissão Pontifícia de Estudos Ecuménicos para a preparação do Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965. Neste concílio (o 21.º concílio ecuménico da Igreja Católica) teve intervenções sobre a nomeação dos bispos (em 7 de Novembro de 1963) e sobre Ecumenismo (13 dias depois), respectivamente nas 62.ª e 71.ª Congregações Gerais do Concílio.
Após o afastamento político do ditador Salazar (ocorrido em 1968), e no seguimento da denominada primavera marcelista, regressou a Portugal em 18 de Junho de 1969, dez anos após o começo do exílio, tendo retomado o governo da diocese portucalense onde procedeu a uma ampla e dinâmica reestruturação. Tendo sido o fundador do semanário Voz Portucalense e do boletim Igreja Portucalense foi também, nos anos 70 do século passado, responsável pela criação da Secção Diocesana da Comissão Pontifícia "Justiça e Paz" e pela instituição do Gabinete de Opinião Pública.
A 23 de Setembro de 1978, cinquenta anos após a sua ordenação sacerdotal, tiveram começo as comemorações das suas bodas de ouro sacerdotais. O pedido de resignação da diocese formulado nos princípios de 1981 foi atendido pela Santa Sé a 18 de Fevereiro do ano seguinte, tendo cessado funções a 2 de Maio do mesmo ano de 1982, com perto de 35 anos de episcopado. Procurando anonimato em recolhimento e estudo, acabou por retirar-se para uma casa diocesana em Ermesinde.
Foi galardoado com a Grã-Cruz da Ordem de Liberdade (logo em 1976) e da Ordem Militar de Cristo (em 1983) depois de, em 12 de Maio de 1982, ter sido alvo de um voto de homenagem aprovado pela Assembleia da República que evocou e elogiou a sua personalidade.
Por testamento de 21 de Agosto de 1977 criou a Fundação Spes, « instituição de natureza perpétua, de fins benéficos, educativos e culturais sob inspiração cristã» cuja acção «desenvolver-se-á em toda a Diocese portucalense, com preferência para as cidades do Porto e Penafiel, Vila Nova de Gaia e seus termos» e «os fins educativos e culturais da Fundação Spes orientar-se-ão sobretudo para a formação e desenvolvimento intelectual dos adultos que se queiram cristãos, e designadamente para os estratos mais cultos e responsáveis».
Além de colaboração diversa no diário Comércio do Porto, Voz do Pastor, Novidades e nos órgãos de comunicação social que criou, publicou,entre outras obras: Herói e Santo (teatro, sob o pseudónimo de G. Penafiel), Pastoral de Despedida da Diocese de Portalegre, Pastoral da Saudação ao Clero do Porto, Discurso de Homenagem ao Cónego Correia Pinto, Alocução do Centenário de D. António Barroso, Evocação dos Antigos Bispos do Porto, Discurso na Passagem do duplo aniversário de Pio XII, A Igreja e o Corporativismo, A Miséria Imerecida do Nosso Mundo Rural (Conferência), O Serviço Social e os Seus Problemas, A Igreja e os Problemas da Instrução e Cultura em Portugal, O Espírito de Roma ou o Espírito de Genebra, Ecumenismo ou Humanismo (Conferência), A Missão dos Intelectuais Católicos, Endireitai as Veredas do Senhor, Ministério Sacerdotal e a sua Renovação,Paz em Portugal pela Reconciliação entre os Portugueses, A Igreja Pós- Conciliar, Paz da Vitória ou Paz da Justiça?, A Paz Depende de Ti, Ecumenismo e Direitos do Homem na Tradição Antiga Portuguesa, Bater a Penitência no Peito dos Outros, Rearmamento Moral e Desmilitarização e A Sociedade e o Trabalho: Democracia, Sindicalismo, Justiça e Paz.
«De joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens» - foi este o lema bíblico de S. Paulo que norteou o seu episcopado.
Faleceu no dia 13 de Abril de 1989,encontrando-se sepultado no cemitério paroquial da freguesia de Milhundos. A sepultura é encimada por uma cruz, tendo no centro uma rosa, símbolo da aspiração cristã da Beleza e do Amor (como fez questão de determinar no artigo décimo do seu testamento).

Bibliografia:
Diciopédia 2001, Porto Editora.
Fundação Spes, 1995.
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vols n.º39 e 5 (actualização), Editorial Enciclopédia Limitada, Lisboa, s/d.

Carta a Salazar

Não é uma carta, muito menos uma "carta aberta". Como sempre disse o Bispo do Porto, trata-se dum "pró-memória" para uma entrevista com o então Presidente do Conselho, em que se enumeram os temas a ser ventilados nesse encontro, que aliás nunca veio a realizar-se.
Esse documento, datado de 13 de Julho de 1958, só pode ser plenamente compreendido se visto à luz da época em que surgiu. Vivia-se em Portugal um clima de movimentação política ocasionada pelas eleições presidenciais de 1958, expressamente referidas na"carta".
O texto é um documento de uma época e das preocupações dum homem da Igreja face aos problemas que ela levanta, importando realçar alguns aspectos:
- é a primeira vez que uma voz da Igreja questiona o corporativismo, tido então como doutrina oficial do regime;
- a novidade de propor não só que os frutos do trabalho comum sejam divididos "com equidade e justiça social entre os membros da comunidade", mas particularmente que o indivíduo deve ter "a justa quota-parte na condução da vida colectiva";
- a afirmação, peremptória, de que o direito de greve, considerado um crime por Salazar, é defendido pela doutrina da Igreja;
-a defesa do sindicalismo livre e não tutelado pelo Estado corporativo;
-a coragem de se falar da criação de partidos, quando se vivia sob a lei do partido único, a União Nacional.
Na época não se suscitava, ainda, a questão colonial - o eclodir da revolta em Angola só se verificaria em 1961(1).
Não obstante não haver o seu Autor desejado nem promovido a difusão do documento em causa, esta veio a ocorrer amplamente, quer pelo aproveitamento que as forças oposicionistas daquele vieram a fazer, quer por parte da própria polícia política e elementos afectos ao regime num clima de hostilidade alimentado por certa imprensa(2) e por campanhas promovidas por gente como Manuel Anselmo com o seu panfleto "Sobre a Declaração de Voto de Sua Ex.cia Reverendíssima o Senhor Bispo do Porto"(3).
D.António partiu para férias no estrangeiro no dia 24 de Julho de 1959.
Salazar nunca mais permitiu o seu regresso ao País.Diga-se, em abono da verdade e como exemplo da seriedade de quem nos governou, que também não teve a coragem de exarar por escrito essa proibição!
Como diz José Geraldes Freire in "Resistência Católica ao Salazarismo-Marcelismo", "o bispo do Porto,sem decreto de exílio, andou exilado pela Espanha, Alemanha, França e Itália". Viveu ainda algum tempo em Alba de Tormes, onde aguardou o regresso a Portugal. Tinham decorrido dez longos anos. Estava-se em 1969.
FONTE:
Prólogo de Fernando Ferreira Gomes,"CARTA A SALAZAR",D.António Ferreira Gomes; Edições do Tâmega,Amarante,1993.
(1)Vide,"Carta ao Bispo do Porto(o caso da Índia)",RUY LUÍS GOMES
(2)"Direcção Perigosa!(Reflexos da carta do Senhor Bispo do Porto)Separata dos artigos publicados no jornal A Voz,nos dias 12,13,14,15 e 16 de Março de 1959. I Parte O Caso em Si II Parte O Caso Perante a Concordata e a Doutrina da Igreja Em Apêndice Ignorância ou Má Fé?
(3)"Uma «Carta Vermelha» do Senhor Bispo do Porto? (Críticas ao livro de Manuel Anselmo «Sobre a declaração de voto de Sua Ex.ª Reverendíssima o Senhor Bispo do Porto»)", Joaquim Faria, s/data e indicação da edição ,provavelmente clandestino.
Carta ao Cardeal Cerejeira
A 16 de Julho de 1968 - dez anos, quase dia por dia, depois de ter enviado a Salazar o famoso memorando - D.António escreveria do exílio, de Lourdes, nova longa carta, endereçada desta vez ao Cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa e Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Não hesitamos em julgar esta carta também histórica, embora as suas repercussões públicas na época tivessem sido muito escassas.
Se, na carta a Salazar, D.António Ferreira Gomes enunciara com coragem a sua posição crítica perante o regime autoritário, sem se embrenhar todavia demasiado na análise daquilo que então qualificou de «terrível comprometimento» da Igreja com esse regime, na carta a Cerejeira, pelo contrário, interpela sem mercê o «chefe da Igreja portuguesa», desmascarando o seu alegado não empenhamento político, lembrando-lhe as suas convicções e afinidades ideológicas de sempre, o seu íntimo relacionamento com o ditador, as suas responsabilidades concretas no desenrolar do «caso do Bispo do Porto», fazendo, em suma, uma denúncia - veemente, embora longe de exaustiva - do enfeudamento da Igreja hierárquica ao regime de Salazar.
Quando o Bispo do Porto, em Lourdes, pegava na caneta para escrever ao Presidente da Conferência Episcopal(1), em Portugal, Salazar e Cerejeira continuavam aparentemente firmes nos seus postos, um no 40.º ano de governo ( 36 de chefia), o outro no 39.º de patriarcado.
Ao longo de várias dezenas de páginas da carta que nesse dia dirige ao Cardeal Cerejeira, o Bispo do Porto descarrega o que lhe vai pela alma e durante muito tempo calara. Com 62 anos de idade e já 9 de exílio, D.António Ferreira Gomes não disfarça o seu ressentimento e usa duma frontalidade que raia a violência. Parece deliberadamente destinado a chocar o tom livre, por vezes sarcástico, desta carta - uma carta aberta ou semiaberta não nos esqueçamos - ao festejado «Príncipe» da Igreja Portuguesa, que completava 80 anos dali a meses. Ninguém ousara jamais falar de modo tão acrimonioso ao Cardeal Cerejeira, diante de cuja inteligência, cordialidade e aura paternal até alguns padres contestários acabavam por se submeter, ofuscados, rendidos ou intimidados. Mas D.António Ferreira Gomes tem claramente uma noção mais terrena da estatura de Sua Eminência.
Saber-se-ia muito mais tarde pelo próprio D.António Ferreira Gomes, através duma evocação solitária que fez da presente carta em entrevista a um jornal, que Cerejeira terá ficado tão «ofendido» com as «verdades» que leu que nem se dignou acusar recepção(2).
Dali a perto de um mês, um acidente doméstico tornaria Salazar inválido e agitaria, enfim, as estagnadas águas da política portuguesa - resultando a prazo, entre outras coisas, no regresso de D.António Ferreira Gomes ao seu País e à sua Diocese.
(1)A carta é endereçada a Cerejeira na sua qualidade de presidente da Conferência Episcopal, a pretexto duma diligência oficial que o Bispo cumpre logo nas primeiras linhas. Sem isso, a carta poderia ter sido classificada como pessoal. Ambiguidade propositada de D.António, para assim impedir o Cardeal Cerejeira de silenciar perante o episcopado a recepção da sua carta?
(2)A entrevista, conduzida por António Cadavez, foi publicada no Diário de Notícias de 16 de Fevereiro de 1987. Esta evocação da carta de 16 de Julho de 1968, nos termos em que é feita, prova, a nosso ver, que D.António não estava em 1987 nada arrependido de a ter escrito.
FONTE:
"CARTA AO CARDEAL CEREJEIRA 16 de Julho de 1968",D.António Ferreira Gomes, Bispo de Porto - Introdução e notas de José Barreto; Publicações D.Quixote, Lisboa, 1996.
Outra Bibliografia
"relações igreja-estado", entrevista com o Bispo do Porto - Raúl Rego, João Gomes; Cadernos República, 1973.
"Bispo do Porto Abriu o Diálogo - EM DIÁLOGO Pastoral Operária Bispo do Porto P.e Chenu"; Prefácio do P. Jardim Gonçalves. EDOC-Edições Operário-Cristãs Col. Horizonte Aberto, s/data.
"Considerações dum Católico sobre o período eleitoral" pelo Eng. Francisco Lino Netto do Centro de Informação Católica; Lisboa, Junho de 1958, s/indicação da impressão, provavelmente clandestino.
"Para Um Diálogo com o Sr.Cardeal Patriarca", Raúl Rego, Edição do Autor, Lisboa-1968.

Um Espírito Inquieto:
"Cartas ao Papa"
Aos 75 anos, pediu, como manda a lei canónica, a resignação, indo viver para Ermesinde. Foi aí que escreveu as célebres Cartas ao Papa João Paulo II, o mesmo que, na sua visita ao Porto, ao receber os cumprimentosde despedida do já bispo resignatário, exclamou:"Ah,o famoso bispo do Porto!"
Nas cartas, refere o episódio e escreve:"Bispo famoso, talvez: de boas e más famas... Na Cúria Vaticana e na Diplomacia Pontifícia, com bela e notáveis excepções, antes más que boas famas". E aí estava mais uma razão para escrever as cartas: lembrar certas coisas do passado e corrigir certas más famas.
Se "o homem não tem liberdade, pois ele é uma liberdade". D.António era agora um homem ainda mais livre, já que "o ser resignatário tira ao bispo certos direitos mas liberta-o das servidões resultantes do ministério
e magistério episcopais".
(...)Mas D.António Ferreira Gomes não se limitou a reflectir sobre alguns desígnios fundamentais do Concílio Vaticano II.
Ousou tocar questões melindrosas. A título de exemplo: dever-se-ia reflectir sobre a actual disciplina da Igreja no tocante à confissão auricular - "Santo Agostinho nunca se confessou" - bem como repensar o processo da canonização dos santos; quanto à diplomacia eclesiástica, lembrando a transparência do Evangelho - seja a vossa palavra sim, sim, e não, não -, a norma desejável seria: "Tanta diplomacia quanta seja necessária ou útil e tão pouca quanta seja possível"; a reforma da Cúria "será baldada se não incluir o desaparecimento da função cardinalícia"; o que se passou no caso do novo Estatuto da Opus Dei foi "um dos factos mais graves da História da Igreja" e dos mais infelizes.
As "Cartas ao Papa" João Paulo II não tiveram resposta.
Anselmo Borges,Padre e professor de Filosofia;in "Diário de Notícias", Domingo, 7. Maio. 2006, página 9, Opinião.