16 dezembro 2016

AMOR AOS LIVROS



AMOR AOS LIVROS
 "no tempo actual das cibernéticas bibliotecas virtuais, a nobreza, o prestígio e a incomparável beleza do livro impresso,  cuja vista e cujo prazer táctil nenhum CD-ROM jamais poderá substituir aos olhos e dedos humanos"
Aníbal Pinto de Castro


                                                                              
                                     

DA “FAMOSA ARTE DA IMPRIMISSÃO”

Obras das Edizioni dell’Elefante
Com um texto de Guglielmo Cavallo
E uma apresentação de Aníbal Pinto da Castro
Biblioteca Joanina 21 de Abril – 23 de Maio de 1998
Com o patrocínio do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal e do Ministero degli Affari Esteri della Republica Italiana
Universidade de Coimbra – Acabou de se imprimir em Coimbra no mês de Abril mcm.xc.viii




Apresentação
     “Num dos últimos dias de Novembro de 1996, quando o ar azul de um céu que as primeira chuvas haviam feito diáfano deixava já um breve arrepio na beleza eterna das pedras de Roma, teve o Senhor Embaixador de Portugal junto da Santa Sé, Dr. António Pinto da França, a gentileza de me levar ao terceiro andar do velho Palácio Lante, na Piazza dei Caprettari, para me fazer conhecer o Editor Enzo Crea.
(…) Para mim que, no meu pouco saber, sempre tenho vivido no amor aos livros, aquele homem que se afadigava para me mostrar as preciosidades gráficas saídas da sua inteligência e de suas mãos, aparecia-me como uma cópia moderna dos Manuzio de Veneza, do Plantin de Antuérpia ou de algum dos impressores portugueses de Quinhentos, fossem eles António Álvares, João de Barreira ou Manuel Lira.

     
E logo no pusemos a congeminar uma exposição com a qual, à semelhança do que ele já fizera em outras bibliotecas famosas, como a Bodleian Library, de Oxford, a Houghton Library, de Harvard, a Biblioteca Apostólica Vaticana ou a Casatanense, de Roma, e na esplendorosa sumptuosidade barroca da sua Real Casa da Livraria, uma espécie de culto do livro com alguns dos primores das suas colecções.
 

Era como se aquele elefante que o Rei D. Manuel enviara em 1514 ao Papa Leão X, com a famosa embaixada de Tristão da Cunha, e que, tomado da
Logo Edizione dell'Elefante
figura esculpida por Bernini  para nobilitar a Praça de Minerva, agora serve de emblema aos livros de Enzo Crea, voltasse a Portugal, para com eles restituir o magnífico preito de vassalagem que, quase cinco séculos antes, o Monarca português quisera prestar ao Romano Pontífice. 
 (…) A última exposição que Enzo Crea organizara, na Biblioteca Casanatense, em Setembro de 1994, recebera a designação de “Res Libraria”. Lembrei-me então da frase a “famosa arte da imprimissão”, que em 1948 Américo Cortez aproveitara para título de uma obra consagrada à história da tipografia e ao estudo da sua importância para a sementeira de cultura que, desde o século XV, os Portugueses haviam levado aos quatro cantos do mundo.

É que tais dizeres não designam apenas a actividade desenvolvida através das artes tipográficas. Contêm também, no mistério que os envolve, uma dimensão simbólica que abrange, para além daquele significado estrito, todo o fascínio e toda a carga cultural que o Tempo e a História imprimiram ao objecto concreto designado pela palavra “livro”.
Com efeito, ao inventariar em 1726 a livraria do Conde de Vimioso, menciona D. Francisco Xavier de Meneses, o quarto Conde da Ericeira, personalidade bem conhecida nos meios culturais portugueses de Setecentos (1673-1743), uma edição das “Obras” do Infante D. Pedro, Duque de Coimbra (1392-1449), em cujo colófon podia ler-se: «Este livro se imprimio seis anos depois que em Basileia foy achada a famosa arte da imprimissão.
(…) Ninguém, desde então, voltou a ver tais livros, provavelmente desaparecidos na voragem do terramoto que em 1755 assolou a cidade de Lisboa. (…)
Fosse como fosse, Enzo Crea aceitou a misteriosa frase, que recolhia há 270 anos naqueles misteriosos livros, ficara simbolicamente como divisa dos primórdios da tipografia em Portugal. Com efeito, ela servia às mil maravilhas para designar a nossa exposição, que procurava manter, no tempo actual das cibernéticas bibliotecas virtuais, a nobreza, o prestígio e a incomparável beleza do livro impresso, cuja vista e cujo prazer táctil nenhum CD-ROM jamais poderá substituir aos olhos e dedos humanos.”
Aníbal Pinto de Castro *, Director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra


Entre o livro e a lâmpada


  Um mestre do pensamento e arqueólogo dos saberes, Michel Foucault, relaciona com a idade moderna a descoberta de um espaço novo para a  imaginação, porventura desconhecido das épocas precedentes, pelo menos em todas a s suas potencialidades. “Este novo lugar de fantasmas deixou de ser a noite, o sono da razão, o vazio incerto escancarado perante o desejo; é, pelo contrário, a vigília, a atenção contínua, o zelo erudito, a atenção sempre vigilante. O quimérico nasce agora da superfície negra e branca dos sinais impressos, do volume fechado e poeirento que se abre sobre um voar de palavras esquecidas; desprende-se com cuidado no sossego da biblioteca, com as suas fiadas de livros, os títulos alinhados, as estantes que limitam por todos os lados, mas que, por outro lado se escancaram ao mundo dos impossíveis. O imaginário intromete-se entre o livro e a lâmpada. O fantástico desaparece dos corações; deixamos de esperar que surja das incongruências da natureza; atingimo-lo na exactidão do saber; a sua riqueza espera por entre os documentos. Para sonhar, não se torna necessário fechar os olhos, basta ler. A verdadeira imagem é o conhecimento. São palavras já ditas… O imaginário não se forma contra o real para o negar ou para compensar a sua perda; alonga-se entre os sinais, de livro para livro, nos interstícios das explicações e dos comentários; nasce e forma-se no intervalo dos textos. É um fenómeno de biblioteca”.

Arrastados pela imaginação, esquecemo-nos de dizer que os livros deste nosso onírico erudito (Michel Foucault) são o produto de uma editora particular, as Edizioni dell’Ellefante, assim chamada pelo símbolo que a representa, o Elefante de Bernini que domina a Praça romana de Minerva. Mas o que são estas Edições do Elefante? Quem as concebeu? A que público se destinam? Que finalidade pretendem? A quem servem? Perguntas ociosas, depois de quanto escreveram, em catálogos comemorativos ou exposições e em intervenções diversas (…).
A arte do livro “ao modo antigo” corria sérios riscos de se afogar naquela indústria cultural que desde o fim da segunda guerra mundial se tornava cada vez mais tumultuosa e agressiva. O livro criado por um “concepteur”, como fora o livro antigo, via-se confinado a experiências circunscritas, a zonas de luminoso silêncio, no meio daquele tumulto: Piazza dei Caprettari, em Roma, a sede dos livros dell’Elefante, e Enzo Crea o seu artífice-“concepteur”, representam uma destas raríssimas zonas.
As Edizioni dell’Elefante nasceram em 1960 como uma “private press” e foram postas sob o signo de Bernini a partir de 1964. Mas as datas não contam. O que conta são os escritores, os artistas, os bibliófilos, os filólogos, os homens de gosto e de cultura que se reúnem à volta de Enzo Crea e que com Enzo Crea colaboram com paixão, conselhos, intervenções ou discussões (…).E a Enzo Crea cabe a escolha dos textos, do papel, da arquitectura da página, dos caracteres tipográficos, do repertório das ilustrações, dos fundos cromáticos, dos frontispícios, das encadernações, do que fazem de cada uma das edições do Elefante um acontecimento irrepetível.”
Guglielmo Cavallo, Professor Catedrático da Universidade de Roma “La Sapienza”

 
* Aníbal Pinto de Castro (Coimbra, Cernache, 17 de Janeiro de 1938 - Coimbra, 7 de Outubro de 2010)

Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde, em 1973, também se doutorou em Literatura Portuguesa, com uma tese sobre Retórica e Teorização Literária em Portugal. Professor catedrático desde 1981, foi nomeado director da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra em 1987. Foi, também, director da Casa de Camilo Castelo Branco, em São Miguel de Seide, desde 1996.

Aníbal Pinto de Castro foi sócio-correspondente da Academia das Ciências de Lisboa desde 1987 e sócio-efectivo desde 1999.

Na sequência da sua actividade de investigador da literatura portuguesa, particularmente de Luís de Camões, Aníbal Pinto de Castro publicou uma vasta obra que ultrapassa os 200 títulos.



JFSR,16-12-2016


19 novembro 2016

O ALMOCREVE DA REPÚBLICA-PADRE BARROS GOMES,VÍTIMA DA REPÚBLICA

«PADRE BARROS-GOMES, VICTIMA DA REPÚBLICA», P. Bráulio Guimarães C.M.
Morto a tiro a 5 de Outubro de 1910, no Palácio de Arroios
Organização dos Padres Manuel Aguiar e Agostinho de Sousa, da Congregação da Missão
Prefácio de D. Manuel Clemente, Bispo Auxiliar de Lisboa
© 2006, Congregação da Missão - Padres Vicentinos e Alêtheia Editores Associando-se ás comemorações do Centenário da República em Portugal, a Alêtheia Editores dá a conhecer a história de uma das vítimas das primeiras horas da República.




    Bernardino Barros-Gomes (1839-1910), bacharel em Matemática e licenciado em Filosofia pela Universidade de Coimbra em 1860, partiu nesse mesmo ano para a Alemanha, onde frequentou a Academia Florestal de Tharandt, cujo curso concluiu em 1862.

   No ano seguinte regressou a Portugal e ficou adido à Repartição de Agricultura. Veio para a Marinha Grande em 1866 para elaborar a planta cadastral do Pinhal, sendo nomeado Administrador das Matas.

   A reforma do Regulamento do Serviço das Matas Nacionais, em 1872, dividiu o país em 3 divisões florestais: Bernardino Barros Gomes foi nomeado Chefe da Divisão do Norte até 1874. De 1874 a 1879 foi Chefe da Divisão Florestal do Sul, terminando as suas funções como Chefe da Divisão Florestal do Centro, de 1879 a 1883. 
  Bernardino Barros Gomes dirigiu o Pinhal de Leiria deixando obra incomparável. Insigne silvicultor, continuou o trabalho de Warnhagen dando ao Pinhal o ordenamento devido, dividindo-o em talhões, através da abertura de aceiros e arrifes. Elaborou, em 1882, a primeira Planta Geral da Mata de Leiria, criou a escrituração técnica do Pinhal e instalou os primeiros postos de meteorologia. Foi também Bernardino Barros Gomes quem propôs a abertura das primeiras estradas: Marinha Grande - S. Pedro de Moel e Marinha Grande - Vieira de Leiria.
  Barros Gomes introduziu em Portugal os estudos de ordenamento e de economia florestal, procedendo a levantamentos cartográficos minuciosos de muitas áreas. Profundo conhecedor da flora portuguesa, relacionou a repartição das espécies florestais com o meio, implementando também os primeiros estudos fitogeográficos. Legou ao País, como cientista e técnico competente, inúmeras publicações, entre relatórios oficiais e sínteses das suas reflexões, para além de mapas que ilustravam uns e outros.
   As suas actividades levaram-no a palmilhar o País e a conhecê-lo a fundo, o que lhe permitiria vir a escrever sínteses notáveis, reunindo as suas observações. A partir das características naturais do território português, esboçou uma divisão regional, proposta em Carta orográfica e regional de Portugal (1875), tendo por base a Carta Geográfica 1:500 000 (1865) dirigida por F. Folque. Ao relevo associou os contrastes climáticos e a repartição da população, num trabalho pioneiro sobre o qual assentariam, meio século depois, as regiões geográficas de A. de Amorim Girão, H. Lautensach e O. Ribeiro.   No Relatório da Administração Geral das Matas relativo ao ano económico de 1879-1880 (1891) foram publicadas, da sua autoria, 9 cartas do conjunto de Portugal (1:1 000 000) com a distribuição das principais espécies florestais, entre as quais o pinheiro manso e bravo, a azinheira, a alfarrobeira e o sobro.
Distribuição das espécies florestais em Portugal segundo B. Barros Gomes: o sobro (1881).
Supõe-se que elas tenham estado na base da preparação de uma outra representação sua, a carta dos arvoredos ou Carta xilográfica de Portugal (1876). As Cartas elementares de Portugal (1878) foram o seu último trabalho de fôlego: este atlas, com cinco pequenos mapas e respectivas descrições, condensa o essencial dos seus estudos e observações, que ultrapassaram a ciência florestal. Ele foi geógrafo “malgré lui”, no dizer de O. Ribeiro, esse outro verdadeiro e destacado geógrafo português.
Embora destinadas ao ensino, pouca repercussão, no entanto, estas Cartas nele parecem ter tido.(1)
   
   Em 1884, já viúvo, entra para a Congregação da Missão e é ordenado sacerdote, passando a dedicar-se à vida religiosa e ao serviço dos pobres. Conhece a morte, pelas mãos dos revolucionários republicanos, no dia 5 de Outubro de 1910, em circunstâncias trágicas «com requintes de selvageria». Não obstante o relato detalhado, na obra a que fazemos referencia, do modo como ocorreu a morte de Bernardino Barros Gomes, bem como a do padre lazarista Alfredo Fragues (2), certas fontes têm vindo, persistentemente, a escamotear a verdade dos factos, atribuindo a mesma a "uma bala transviada" que "o atingiu mortalmente" (3).




  Em 1917, na Conferência Florestal, os Florestais portugueses alvitraram que se prestasse uma condigna homenagem àquele que foi o seu grande “Mestre”. No entanto, esta só veio a acontecer em 30 de Setembro de 1939, no centenário do seu nascimento, em Pedreanes, onde foi inaugurado um modesto mas significativo monumento. Na inauguração do monumento em sua homenagem estiveram presentes Silvicultores, Regentes Florestais e um pelotão formado por Guardas Florestais. O elogio do homenageado esteve a cargo do Silvicultor Júlio Mário Viana. Nesse mesmo dia foi plantado junto ao monumento um pinheiro manso já com três anos de idade, que hoje dá sombra ao monumento.(4)





MONUMENTO A BERNARDINO BARROS GOMES (5)


Localização: Marinha Grande, Freguesia da Marinha Grande, Estrada Principal do Pinhal do Rei, Pedreanes.
Data de Inauguração: 30-09-1939
 Promotor: Pessoal Florestal 
Materiais: Bronze (medalhão)
Descrição/ Tema: Medalhão de arte do século xx, de inspiração naturalista, com o homenageado retratado em vestes sacerdotais. Encontra-se integrado num maciço bloco com a representação em baixo relevo, da planta da área do “Pinhal de Leiria” em quadrículas, revelando a subdivisão do pinhal em “talhões”. Na base que consiste num bloco de pedra calcária, consta a inscrição: “AO INSIGNE / ENGENHEIRO DE FLORESTAS / BERNARDINO BARROS GOMES / O PESSOAL FLORESTAL / 30-9-1939”.
Historial: Monumento inaugurado no ano do centenário do nascimento de Bernardino António Barros Gomes (1839-1910), considerado um importante silvicultor no desenvolvimento do Pinhal de Leiria. Com cerca de 56 terá deixado esta atividade para se dedicar à vida religiosa.
Bibliografia: MENDES, José M. Amado Mendes, História da Marinha Grande, pg 161, ed. Câmara Municipal da Marinha Grande 1993; http://opinhaldorei.blogspot.pt/ [consult. 08-04-2014].
Bibliografia: Fotógrafo: Susana Paiva
Ano de Registo Fotográfico: 2005

Fontes:
(1) http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p59.html (2) sábado, agosto 25, 2007
(2) Vide FERREIRA, António Matos - Um católico militante diante da crise nacional : Manuel Isaías Abúndio da Silva : 1874-1914. Lisboa : Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa, 2007. ISBN 978-972-8361-25-9

"Para os republicanos, por seu lado, a questão religiosa tornara-se peça importante na questão política, no combate contra os monárquicos, mas também como forma de unir os republicanos procurando contrariar a contestação social, incluindo a que despontava e se afirmava nos sectores populares. Por tudo isto, a partir do 5 de Outubro, o novo regime produzira rapidamente medidas concretas em relação à Igreja católica, onde o anticlericalismo, que constituíra elemento central da propaganda e da luta republicana na sua raiz maçónica e jacobina, acabou por determinar não só a elaboração legislativa, mas também e definição de um ambiente social incentivador desses procedimentos.

Este cunho anticlerical, com características persecutórias, evidenciara-se nos primeiros passos da Revolução, tendo em conta que diversos membros do clero foram sujeitos a ultrajes, à prisão, e dois deles, os padres Barros Gomes e Alfredo Fragues, foram mesmo assassinados."

(3)sábado, agosto 25, 2007
A MENTIRA DAS OMISSÕES/VÍTIMAS
Augusto Ascenso Pascoal
(4) quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012 Bernardino Barros Gomes
JM Gonçalves
http://opinhaldorei.blogspot.pt/2012/02/bernardino-barros-gomes.html
(5) http://www.culturacentro.pt/museuit.asp?id=335

JFSR,19-11-2016
  








 
 

  





05 novembro 2016

O ALMOCREVE DA REPÚBLICA - JUÍZES CASTIGADOS

JUÍZES CASTIGADOS POR AFONSO COSTA

    
    Chegados ao poder, os pontífices republicanos ordenaram um processo judicial contra João Franco e outros, por “dissipação de bens públicos” e vários outros crimes. Apresentada a acusação no Tribunal da Relação de Lisboa, não encontrou acolhimento favorável. Os juízes anularam todo o processo e mandaram arquivá-lo, o que acendeu a ira do governo e teve funestas consequências na carreira dos quatro magistrados.
   A argumentação destes limitara-se a princípios gerais do direito: só se pode incriminar uma pessoa por actos definidos como crimes em lei anterior aos mesmos. Em Portugal não havia lei que determinasse a responsabilidade dos ministros pelos seus actos de governo. Várias vezes se haviam apresentado projectos-lei sobre a matéria, mas nenhum deles fora aprovado. Mesmo que fosse possível a acusação aos antigos ministros, esta caberia à Câmara dos Deputados, que estava dissolvida, não havendo ainda instituição que a substituísse.
   A acusação de João Franco fora já proposta ao parlamento pelo deputado Afonso Costa, em 1908, e rejeitada por grande maioria. Visto que a acusação fora já rejeitada pela única entidade competente para a apreciar, e tendo em conta as outras razões, consideravam os juízes que o Tribunal da Relação não era competente para apreciar o processo e mandavam anulá-lo.
Afonso Costa
   A resposta do Governo Provisório abateu-se prontamente sobre os quatro juízes que deste modo desafiavam os intentos vingativos da República Portuguesa. Tomando a decisão de arquivamento como uma afronta à Nação Portuguesa, decretava o governo provisório, em 21 de Dezembro de 1910, que os prevaricadores fossem transferidos para o Tribunal da Relação de Nova Goa.
   O decreto do governo provisório abria com um longo preâmbulo, onde era duramente atacada a atitude dos juízes, a quem se atribuíam malévolas intenções. Tinham aqueles se insurgido “abertamente contra alguns princípios essenciais da Republica Portuguesa, tais como: a responsabilidade ministerial, a igualdade de todos os cidadãos perante a justiça, a incompatibilidade absoluta entre os crimes de desvios de dinheiros públicos e os abusos de origem ou carácter politico”. Mais ainda: “pretenderam desferir contra ella (a república) golpes audazes, que inutilizariam a justiça na sua própria essencia moral se pudessem ficar como regra ou mesmo sómente como exemplo”. Tinham agido como “juízes monarchicos, impenitentes adoradores da carta, contra os princípios essenciaes da nova Republica. Elles quizeram innocentar, libertar dos simples incommodos das accusações criminaes, todos os ministros do antigo regime”.
   O crime dos juízes consistia, pois, em haverem proferido uma sentença que ignorava os grandes acontecimentos ocorridos no país em 5 de Outubro. Aqui o decreto ganha um tom doutrinário, revelando a interpretação do governo provisório sobre o mandato que lhe fora confiado: os ministros do governo provisório tinham sido “acclamados pelo povo e não nomeados pelo Rei”, o que lhes dava uma autoridade superior a qualquer outro poder, mesmo o judicial. “O Governo Provisório, tendo recebido directamente da Nação a soberania sem limitação alguma, cabendo-lhe por isso todos os poderes do Estado, em vez de os conservar na sua mão, como era seu direito … apressou-se a reconhecer ao antigo poder judiciário … a plenitude da funcção de julgar”. Este acto generoso tornava mais grave a infidelidade dos juízes aos propósitos da república. Era o governo quem tinha autoridade para definir todos os princípios de organização da sociedade portuguesa.“Perante o simples facto da proclamação da Republica caiu tudo quanto na carta representava organização do Estado, agora confiada pela Revolução, exclusivamente ao Governo Provisório e à livre vontade dos eleitores”.
  
Abel de Mattos Abreu e colegas
O Desembargador Abel de Mattos Abreu,
considerado o cabecilha do grupo de «juízes rebeldes», como foram apelidados pelos republicanos no poder, juntamente com os seus colegas Basílio Alberto Lencastre da Veiga, António Augusto Barbosa Vianna e Manuel Pereira Pimenta de Sousa e Castro,deixavam de pertencer ao Tribunal da Relação de Lisboa e eram colocados nas quatro vagas existentes no Tribunal da Relação de Nova Goa,por decreto de Afonso Costa de 21 de Dezembro de 1910, publicado no Diário do Governo n.º 66 de 1910, de 22 de Dezembro daquele ano.

Foi um período doloroso para Abel de Mattos Abreu e família por se sobrepor à doença e morte, a 25 de Janeiro de 1911, da sua mulher Maria José. Teria mesmo chegado a ponderar a hipótese de não acatar o decreto.  A 8 de Abril de 1911, Mattos Abreu, acompanhado dos filhos Adriana e Augusto, parte para Nova Goa, onde chega no dia 1 de Maio, em plenas férias judiciais. 
   No dia 6 de Junho, é publicado em Lisboa, no Diário do Governo, um sucinto decreto “mandando que sejam novamente colocados no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes que do mesmo tribunal haviam sido removidos”. 
  E, um mês depois, a 13 de Julho, o Supremo Tribunal de Justiça, julgando definitivamente, anula todo o processo contra João Franco.
   A 12 de Junho, após curta estadia, Mattos Abreu inicia a sua viagem de regresso à Relação de Lisboa, por decreto de Bernardino Machado de 6 de Junho de 1911. Aí permanecerá até 1 de Abril de 1919, quando ascende a juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.  
Bernardino Machado
  Abel de Mattos julgou sempre segundo a sua consciência de homem livre, aplicando a lei com rigor e independência, ignorando interesses e poderes instalados. Assim, afrontou dois dos maiores vultos políticos do Portugal Contemporâneo:um deles, João Franco, encarnando a Monarquia na sua última barricada, quando colocado no Tribunal do Comércio em Lisboa, onde, a 4 de Julho de 1907, com a independência que lhe era reconhecida, negou, em sucessivas sentenças, força legal a um decreto do Primeiro-Ministro sobre cobranças de pequenas dívidas (os grandes devedores eram deixados em paz), que fora promulgado em ditadura, tendo em consequência dessa decisão sido “desterrado” para a Relação dos Açores; o outro, Afonso Costa, encarnando a República nas suas revoltas. 




A transferência dos juízes inspirou uma indignada crónica de Fialho de Almeida, incluída mais tarde no seu livro “Saibam Quantos…” 


O autor de “Os Gatos” admirava-se da passividade com que a magistratura portuguesa recebera esta afronta, submissamente, sem protestos.










A enorme distancia, no minúsculo território do Estado da Índia, Soares Rebelo, advogado e antigo juiz substituto, através do seu criterioso estudo jurídico intitulado «Um acto de Justiça imaculada», tentou analisar “num intuito puramente científico” os dois arestos da Relação de Lisboa, apontando as irregularidades daquele processo, que não tinha por base uma lei particular expressamente exarada no País sobre a responsabilidade criminal dos ministros monárquicos por actos cometidos no exercício das suas funções públicas.
O autor tem palavras de apreço e de admiração para com os Desembargadores da Relação de Lisboa que despronunciaram os pretensos criminosos incorrendo no desagrado dos Governantes e suportando injusta transferência, por castigo. Presta-lhes os mais rasgados elogios pela coragem e pelo brio com que aqueles «mais uma vez acreditaram a “independência” da magistratura portuguesa».

Fontes:


(consultada a 05-11-2016,17:27)
Soares Rebelo, Joaquim Filipe Néry: «Um acto de Justiça imaculada», publicado n’«A Índia Portuguesa», Orlim, ano 22.º, n.ºs 2475 e 2476, de 28 de Janeiro e 4 de Fevereiro de 1911. Vide «Soares Rebelo OBRAS COMPLETAS», vol.II, pp.235-253, Lourenço Marques, Moçambique, 1973.
 




JFSR,05-11-2016