23 abril 2006

QUANDO OS LOBOS JULGAM A JUSTIÇA UIVA (V)

A 1.ª edição da obra no Brasil
Quando já davamos por encerrado este assunto, deparou-se-nos, recentemente, numa banca de alfarrabista a primeira edição brasileira da obra «Quando os Lobos Uivam», da iniciativa da Editora ANHAMBI S.A.(São Paulo,Brasil), em Junho de 1957 [405.º Ano da Fundação da Cidade de São Paulo], com Prefácio de Adolfo Casais Monteiro (1) e Capa de Fernando Lemos (2), ambos portugueses, exilados por motivos políticos naquele País de acolhimento.
Tratava-se, aliás, da primeira vez que um romance de Aquilino Ribeiro era publicado no Brasil. Como assinala o próprio Casais Monteiro, no seu notável prefácio:"Facto já de si muito significativo,maior valor ganha por constituir como que uma desafronta ao grande escritor, impedido por uma censura inepta de ver a sua obra reeditada em Portugal. Assim, o Brasil, ao mesmo tempo que desagrava moralmente o escritor, assume a posição de legítimo juiz na causa da cultura portuguesa, repudiando a prepotência ditatorial, repondo no seu devido lugar o direito de escritor, a legítima e essencial liberdade de criação."
Como curiosidade, assinale-se que na badana da contracapa da edição em apreço figura, entre várias outras citações, a seguinte atribuída a António de Oliveira Salazar (3) : «Comece o seu inquérito por Aquilino.É um inimigo do regime. Dir-lhe-á mal de mim, mas não importa: é um grande escritor.»
(1) Figuras da Cultura Portuguesa - Adolfo Casais Monteiro, Carlos Leone
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/figuras/acmonteiro.html
(2) O Poder do Gesto em Fernando Lemos - Maurício Matos
http://www.triplov.com/surreal/lemos.html
(3) António de Oliveira Salazar - Político e estadista: 1889 - 1970, Fernando Correia da Silva
http://www.vidaslusofonas.pt/salazar.htm

04 abril 2006

QUANDO OS LOBOS JULGAM, A JUSTIÇA UIVA (IV)

As "injúrias" à Magistratura: Os Tribunais Plenários
A amnistia

A acusação, desdenhando da índole do livro - pois que de romance que é julgou-o como panfleto - e alargando as vistas para lá dos horizontes do Ministério da Justiça, que em nota publicada nos jornais anunciou o chamado processamento criminal por ofensas à Magistratura, veio a descobrir nele crimes de subversão, descrédito do País e injúrias aos governantes(1).
A "Magistratura" não pode considerar-se, sob o ponto de vista do processo penal, como um possível sujeito passivo da infracção. A designação "magistratura" não corresponde, jurídicamente, a uma realidade pessoal, individual ou colectiva. Não é um órgão em si, não é um serviço. A designação tem um sentido corrente, não legal, genérico, não pessoas, como, por exemplo, "a advocacia" para designar, apenas, o conjunto das pessoas que exercem a judicatura. Ninguém se lembraria de incriminar alguém por ofensas à "advocacia"(2).
Aquilino, acusado designadamente de ofender no seu livro o Tribunal Plenário e os magistrados que nele prestavam serviço, viu ser-lhe movido um processo destinado a ser julgado, como não podia deixar de ser... no Tribunal Plenário!. E pelos magistrados que se consideravam por ele injuriados!
Cavaleiro Ferreira(ob.cit.,págs.173 e 174) começa por afirmar: "Tribunais de excepção ou extraordinários, estranhos à organização comum dos tribunais, sem as garantias que, como poder do Estado autónomo e independente, lhes estão estatuídas pelo art.º119.ºda Constituição e legislação ordinária que a executa e completa, não são permitidos em matéria criminal, quando a sua competência seja estabelecida em função de determinada ou determinadas categorias de crimes. Os únicos tribunais extraordinários admissíveis são os que se encontravam criados à data da promulgação da Constituição, ou organizados posteriormente para julgamento de crimes fiscais, sociais ou contra a segurança do Estado"(3).
Não é aqui especialmente relevante apurar se estes tribunais, a que ao tempo estava cometido, designadamente, o julgamento dos "crimes contra a segurança do Estado" e de muitos dos "crimes contra a ordem e a tranquilidade pública"(títulos II e III do Código Penal) - os Tribunais Plenários - eram, ou não, em sentido estrito, tribunais políticos.
A tese oficial negava-o, evidentemente, do mesmo modo que recusava a qualificação de preso político aos arguidos que ali eram conduzidos - preferindo chamar-lhes (e mesmo assim apenas no recôndito dos estudos jurídicos) tribunais "especiais, ou melhor, extraordinários".
O certo, no entanto, é que aqueles tribunais julgavam e condenavam cidadãos acusados de crimes políticos. E, nessa função, agiam quase sempre, e como já se acentuou, enquanto instrumentos dóceis dos imperativos do poder poliítico.
O quadro legal em que funcionavam, a legislação que eram chamados a aplicar e o próprio modo como eram designados para neles exercer funções os magistrados (judiciais e do Ministério Público) - tudo concorria, sem margem para dúvidas, para atribuir aos Tribunais Plenários e à generalidade dos respectivos magistrados um papel relevante na prossecução da política repressiva do regime de Salazar (e, posteriormente, de Caetano).
Mas a aparência que o regime sempre entendia emprestar-lhes era a de uma legalidade rigorosa - naturalmente, a que ele próprio produzia, de modo autocrático, recusando as instituições e os mecanismos democráticos, negando os mais elementares direitos políticos e cívicos aos cidadãos.
Mais uma vez, o processo contra Aquilino Ribeiro é exemplo elucidativo. O escritor não é acusado de professar uma ideologia, nem sequer de pertencer a uma organização - embora lhe procurem, nos documentos, pressurosa e insistentemente juntos ao processo pelo M.º P.º, eventuais e pretéritas ligações.
A acusação apenas incidia, basicamente, no cometimento de injúrias. Todas as demais acusações articulavam-se com refeência a esssas supostas injúrias.
Assim, poderia dizer-se, beatificamente, que não se estava ali perante um processo político. Nem Aquilino poderia ser considerado um preso político ou um preso de consciência.
Este primado da aparência não deve, no entanto, ser dissociado da que era a situação das instituições e da legalidade no regime então vigente(4).
No dizer de Franco Nogueira,"também se deve incluir no ciclo henriquino o decreto de amnistia publicado em 12 de novembro de 1960.(...) Esta amnistia (Dec.43309) abrangeu também alguns delitos havidos por ideológicos ou de opinião, além de delitos económicos, eleitorais, de imprensa, etc. Entre os primeiros, e abrangido pela amnistia, figurou Aquilino Ribeiro ( acusado de ofensas à Magistratura pelo seu livro Quando os Lobos Uivam), e também outros como Moreira de Campos, Padre Abel Varzim, etc."(5).
A amnistia, pode dizer-se, referiu-se prioritariamente ao processo movido contra Aquilino Ribeiro - ele era, de entre os amnistiados, aquele sobre quem recaíam as mais pesadas acusações. Por arrastamento, abrangeu também alguns outros, poucos, oposicionistas(6).
Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo, o acusador de Aquilino Ribeiro, foi nomeado, em Maio de 1963, Ajudante do Procurador da República junto da Relação de Lisboa, servindo de acusador em inúmeros processos políticos julgados no Tribunal Plenário de Lisboa.
No post 25 de Abril de 1974, (...) por deliberação do Conselho Superior da Magistratura, de 18 de Outubro de 1988, foi nomeado Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, vindo a presidir à respectiva Secção Criminal(7).

FONTES:

(1),(2),(4),(6) e (7) Caldeira, Alfredo/ Andringa, Diana:«Em Defesa de Aquilino Ribeiro», TERRAMAR, 1994; respectivamente, a págs.196,202,219-220,235,242,e 254.

(3) Ferreira, Manuel Cavaleiro, "Curso de Processo Penal (Lições proferidas no ano lectivo 1954-1955)", s/indicação de editor, Lisboa, 1955-1958.

(5) Nogueira, Franco: In "Salazar -Vol.V - A Resistência (1958-1964)", Livraria Civilização, Porto, 1984, a págs.177, nota(1).

01 abril 2006

QUANDO OS LOBOS JULGAM, A JUSTIÇA UIVA(III)

Àcerca do Autor:
Aquilino Ribeiro

Aquilino Ribeiro nascido a 13 de Setembro de 1885, na freguesia de Carregal da Tabosa, concelho de Sernancelhe, filho de Mariana do Rosário Gomes e do Padre Joaquim Francisco Ribeiro, ingressou em1895 no Colégio da Senhora da Lapa, indo seguidamente para Lamego, mais tarde Viseu(ano de 1902), onde cursou Filosofia, e, pouco tempo depois, para o Seminário de Beja, donde foi expulso em 1904, por falta de vocação.
Registos desse tempo juvenil encontram-se ficcionados em A Via Sinuosa, no díptico Cinco Réis de Gente e Uma Luz ao Longe, e sob a forma de memórias em Um Escritor Confessa-se, publicado postumamente.
Chegado a Lisboa, em 1906, dividiu-se entre a escrita, com artigos de opinião publicados em jornais como a Vanguarda, jornal republicano, ou a redacção em parceria com José Ferreira da Silva do folhetim A Filha do Jardineiro, de propaganda republicana e de crítica às figuras do regime monárquico.
Aderiu por completo às movimentações republicanas, quer através de um posicionamento pela escrita, quer através da participação em actividades que acabaram por levá-lo à cadeia, no ano de 1907, de onde se evadiu em situações rocambolescas.
Depois de alguns meses de clandestinidade em Lisboa, seguiu para Paris onde contactou com a intelectualidade portuguesa que, também por motivos políticos, se viu forçada a viver fora de Portugal, e ali conheceu Grete Tiedemann, sua primeira mulher e mãe do filho mais velho.
No dealbar da Guerra Mundial, foi forçado pelas circunstâncias a regressar ao seu país com a família, em 1914.
Já em Portugal, ocuparam-no, para além da escrita ficcional e da escrita cronística para a imprensa periódica (uma actividade que desenvolveria com enorme regularidade ao longo de toda a sua vida), o trabalho de professor no Liceu Camões, onde ficou durante três anos, e, posteriormente, o cargo de segundo bibliotecário na Biblioteca Nacional, para onde entrou a convite de Raul Proença, continuando a desenvolver uma actividade cívica que iria ter a sua expressão mais visível na revista Seara Nova, publicação preponderante quer na difusão dos ideais republicanos (sociais e educativos, nomeadamente), quer mesmo no evoluir da conturbada vida política da 1.ª República.
A sua participação, em 1927, na revolta frustrada contra a ditadura militar sequente ao golpe de 28 de Maio de 1926, obrigou-o, por isso, a refugiar-se em Paris.
De regresso a Portugal, voltou a participar numa acção anti-regime (no chamado movimento do regimento de Pinhel), mas foi capturado e levado para a prisão do Fontelo, em Viseu. Fugiu também dessa vez, escondendo-se pelas serranias beirãs, encetando uma difícil jornada que de novo o levou até Paris; destas experiências de activista político aproveitou também o escritor, no enredo, por exemplo, de O Arcanjo Negro (redigido em 1939-40, mas, devido a problemas com a censura, publicado apenas em 1947) ou de O Homem que Matou o Diabo.
Sublinhe-se que na década de 20 publicara duas obras que, a par de Terras do Demo e de A Casa Grande de Romarigães, constituem dois dos seus textos mais emblemáticos: o picaresco Malhadinhas, primeiro inserido no volume de novelas Estrada de Santiago, depois em edição independente, e o extraordinário Andam Faunos pelos Bosques, uma sátira genial, mas tolerante ao conservadorismo cristão e um hino ao amor livre.
O tempo de exílio terminou em 1932, ano em que regressou ainda clandestinamente a Portugal; tinha entretanto casado em segundas núpcias (a primeira mulher morrera no ano de 1927) com Jerónima Dantas Machado, filha de Bernardino Machado, o Presidente da República deposto por Sidónio Pais.
Em 1933, o conjunto de novelas As Três Mulheres de Sansão recebeu o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa, e em 1935 foi eleito sócio correspondente desta instituição, da qual se tornaria sócio efectivo em 1957.
Não tendo nunca abdicado da originalidade, um dos seus grandes valores estéticos, acabou por não alinhar com nenhum dos movimentos literários de que foi contemporâneo. Continuou a participar em acções críticas da ditadura salazarista, tendo aderido ao MUD (Movimento de Unidade Democrática) empenhando-se na defesa e difusão da causa, por exemplo, em textos publicados na imprensa diária, em 1948-49 apoiou a campanha presidencial de Norton de Matos, integrando, com outras figuras do saber, a Comissão Promotora do Voto, e militou na candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República, no ano de 1958.
A este activismo político, há que juntar a tenacidade com que, durante mais de duas décadas, promoveu uma agregação formal e institucionalizada dos escritores até conseguir criar, unido a alguns contemporâneos, a Sociedade Portuguesa de Escritores, de que foi fundador e presidente, isto no ano de 1956.
O tempo não lhe subtraiu o prestígio de grande figura da escrita, reconhecido dentro e fora de de Portugal.
Atestam esse prestígio factos como a apresentação da sua candidatura ao Nobel, proposta por Francisco Vieira de Almeida e subscrita por José Cardoso Pires, David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, José Gomes Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Joel Serrão, Mário Soares, Vitorino Nemésio, Abel Manta, Alves Redol, Luísa Dacosta, Vergílio Ferreira, entre muitos outros.
Atesta-o sobremaneira o extraordinário movimento que se desenvolveu em sua defesa depois da publicação do romance Quando os Lobos Uivam, em 1958, considerado pelo regime como injurioso das instituições de poder e levando à instauração de um processo crime contra o escritor. Para além da defesa formal, levada a cabo pelo advogado Heliodoro Caldeira, Aquilino teve o apoio de cerca de 300 intelectuais portugueses que se juntaram num abaixo-assinado pedindo o arquivamento do processo; fora de Portugal, François Mauriac redigiu uma petição em defesa de Aquilino, assinada, nomeadamente, por Louis Aragon e André Maurois e publicada em vários jornais e revistas franceses. O processo crime acabou por ser arquivado cerca de vinte meses depois da sua instauração, na sequência de uma amnistia.
Embora sem se fazer completamente justiça, encerrava-se uma acção injuriosa dirigida contra «alguém que foi e será sempre um dos nomes maiores das nossas letras, que trouxe à língua uma plasticidade impressionante combinando o rústico com o erudito, que foi um observador atento das 'grandezas e misérias' do género humano, que criou uma galeria de personagens passando pelo campesino beirão, pelo pequeno-burguês de província, pelo cosmopolita, pelo idealista, pelo obcecado, pelo asceta e pelo sibarita, pela mulher tentadora e pela virgem solícita e generosamente disponível...alguém que, enfim, por via da reflexão, saber, trabalho, estudo, deixou para os séculos uma visão exaltante da existência, mas temperada pela melancolia de quem não esquece a inevitável efemeridade de todas as coisas»(1).
"Alcança quem não cansa", diz o ex-libris de Aquilino Ribeiro. Não poderia ter escolhido melhor este escritor, que se designava a si próprio como um "obreiro das letras" e que trabalhou incansavelmente quase até ao dia da sua morte, chegada a 27 de Maio de 1963.
"Mais não pude", pretendeu Aquilino que fosse o seu epitáfio.
FONTE:
(1) Martins, Serafina "Figuras da Cultura Portuguesa - Aquilino Ribeiro"
Centro Virtual Camões-Cultura Portuguesa Século XX/ Instituto Camões Portugal 2003-2006