04 abril 2006

QUANDO OS LOBOS JULGAM, A JUSTIÇA UIVA (IV)

As "injúrias" à Magistratura: Os Tribunais Plenários
A amnistia

A acusação, desdenhando da índole do livro - pois que de romance que é julgou-o como panfleto - e alargando as vistas para lá dos horizontes do Ministério da Justiça, que em nota publicada nos jornais anunciou o chamado processamento criminal por ofensas à Magistratura, veio a descobrir nele crimes de subversão, descrédito do País e injúrias aos governantes(1).
A "Magistratura" não pode considerar-se, sob o ponto de vista do processo penal, como um possível sujeito passivo da infracção. A designação "magistratura" não corresponde, jurídicamente, a uma realidade pessoal, individual ou colectiva. Não é um órgão em si, não é um serviço. A designação tem um sentido corrente, não legal, genérico, não pessoas, como, por exemplo, "a advocacia" para designar, apenas, o conjunto das pessoas que exercem a judicatura. Ninguém se lembraria de incriminar alguém por ofensas à "advocacia"(2).
Aquilino, acusado designadamente de ofender no seu livro o Tribunal Plenário e os magistrados que nele prestavam serviço, viu ser-lhe movido um processo destinado a ser julgado, como não podia deixar de ser... no Tribunal Plenário!. E pelos magistrados que se consideravam por ele injuriados!
Cavaleiro Ferreira(ob.cit.,págs.173 e 174) começa por afirmar: "Tribunais de excepção ou extraordinários, estranhos à organização comum dos tribunais, sem as garantias que, como poder do Estado autónomo e independente, lhes estão estatuídas pelo art.º119.ºda Constituição e legislação ordinária que a executa e completa, não são permitidos em matéria criminal, quando a sua competência seja estabelecida em função de determinada ou determinadas categorias de crimes. Os únicos tribunais extraordinários admissíveis são os que se encontravam criados à data da promulgação da Constituição, ou organizados posteriormente para julgamento de crimes fiscais, sociais ou contra a segurança do Estado"(3).
Não é aqui especialmente relevante apurar se estes tribunais, a que ao tempo estava cometido, designadamente, o julgamento dos "crimes contra a segurança do Estado" e de muitos dos "crimes contra a ordem e a tranquilidade pública"(títulos II e III do Código Penal) - os Tribunais Plenários - eram, ou não, em sentido estrito, tribunais políticos.
A tese oficial negava-o, evidentemente, do mesmo modo que recusava a qualificação de preso político aos arguidos que ali eram conduzidos - preferindo chamar-lhes (e mesmo assim apenas no recôndito dos estudos jurídicos) tribunais "especiais, ou melhor, extraordinários".
O certo, no entanto, é que aqueles tribunais julgavam e condenavam cidadãos acusados de crimes políticos. E, nessa função, agiam quase sempre, e como já se acentuou, enquanto instrumentos dóceis dos imperativos do poder poliítico.
O quadro legal em que funcionavam, a legislação que eram chamados a aplicar e o próprio modo como eram designados para neles exercer funções os magistrados (judiciais e do Ministério Público) - tudo concorria, sem margem para dúvidas, para atribuir aos Tribunais Plenários e à generalidade dos respectivos magistrados um papel relevante na prossecução da política repressiva do regime de Salazar (e, posteriormente, de Caetano).
Mas a aparência que o regime sempre entendia emprestar-lhes era a de uma legalidade rigorosa - naturalmente, a que ele próprio produzia, de modo autocrático, recusando as instituições e os mecanismos democráticos, negando os mais elementares direitos políticos e cívicos aos cidadãos.
Mais uma vez, o processo contra Aquilino Ribeiro é exemplo elucidativo. O escritor não é acusado de professar uma ideologia, nem sequer de pertencer a uma organização - embora lhe procurem, nos documentos, pressurosa e insistentemente juntos ao processo pelo M.º P.º, eventuais e pretéritas ligações.
A acusação apenas incidia, basicamente, no cometimento de injúrias. Todas as demais acusações articulavam-se com refeência a esssas supostas injúrias.
Assim, poderia dizer-se, beatificamente, que não se estava ali perante um processo político. Nem Aquilino poderia ser considerado um preso político ou um preso de consciência.
Este primado da aparência não deve, no entanto, ser dissociado da que era a situação das instituições e da legalidade no regime então vigente(4).
No dizer de Franco Nogueira,"também se deve incluir no ciclo henriquino o decreto de amnistia publicado em 12 de novembro de 1960.(...) Esta amnistia (Dec.43309) abrangeu também alguns delitos havidos por ideológicos ou de opinião, além de delitos económicos, eleitorais, de imprensa, etc. Entre os primeiros, e abrangido pela amnistia, figurou Aquilino Ribeiro ( acusado de ofensas à Magistratura pelo seu livro Quando os Lobos Uivam), e também outros como Moreira de Campos, Padre Abel Varzim, etc."(5).
A amnistia, pode dizer-se, referiu-se prioritariamente ao processo movido contra Aquilino Ribeiro - ele era, de entre os amnistiados, aquele sobre quem recaíam as mais pesadas acusações. Por arrastamento, abrangeu também alguns outros, poucos, oposicionistas(6).
Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo, o acusador de Aquilino Ribeiro, foi nomeado, em Maio de 1963, Ajudante do Procurador da República junto da Relação de Lisboa, servindo de acusador em inúmeros processos políticos julgados no Tribunal Plenário de Lisboa.
No post 25 de Abril de 1974, (...) por deliberação do Conselho Superior da Magistratura, de 18 de Outubro de 1988, foi nomeado Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, vindo a presidir à respectiva Secção Criminal(7).

FONTES:

(1),(2),(4),(6) e (7) Caldeira, Alfredo/ Andringa, Diana:«Em Defesa de Aquilino Ribeiro», TERRAMAR, 1994; respectivamente, a págs.196,202,219-220,235,242,e 254.

(3) Ferreira, Manuel Cavaleiro, "Curso de Processo Penal (Lições proferidas no ano lectivo 1954-1955)", s/indicação de editor, Lisboa, 1955-1958.

(5) Nogueira, Franco: In "Salazar -Vol.V - A Resistência (1958-1964)", Livraria Civilização, Porto, 1984, a págs.177, nota(1).