O ALMOCREVE DA REPÚBLICA - JUÍZES CASTIGADOS
JUÍZES CASTIGADOS POR AFONSO COSTA
Chegados ao poder, os pontífices republicanos ordenaram um processo judicial contra João Franco e outros, por “dissipação de bens públicos” e vários outros crimes. Apresentada a acusação no Tribunal da Relação de Lisboa, não encontrou acolhimento favorável. Os juízes anularam todo o processo e mandaram arquivá-lo, o que acendeu a ira do governo e teve funestas consequências na carreira dos quatro magistrados.
O Desembargador Abel de Mattos Abreu, considerado
o cabecilha do grupo de «juízes rebeldes», como
foram apelidados pelos republicanos no poder, juntamente com os seus colegas Basílio
Alberto Lencastre da Veiga, António Augusto Barbosa Vianna e Manuel Pereira
Pimenta de Sousa e Castro,deixavam de pertencer ao Tribunal da Relação de Lisboa e
eram colocados nas quatro vagas existentes no Tribunal da Relação de Nova Goa,por decreto de Afonso Costa de 21 de Dezembro de 1910, publicado
no Diário do Governo n.º 66 de 1910, de 22 de Dezembro daquele ano.
JFSR,05-11-2016
Chegados ao poder, os pontífices republicanos ordenaram um processo judicial contra João Franco e outros, por “dissipação de bens públicos” e vários outros crimes. Apresentada a acusação no Tribunal da Relação de Lisboa, não encontrou acolhimento favorável. Os juízes anularam todo o processo e mandaram arquivá-lo, o que acendeu a ira do governo e teve funestas consequências na carreira dos quatro magistrados.
A argumentação destes limitara-se a princípios gerais do
direito: só se pode incriminar uma pessoa por actos definidos como crimes em
lei anterior aos mesmos. Em Portugal não havia lei que determinasse a
responsabilidade dos ministros pelos seus actos de governo. Várias vezes se
haviam apresentado projectos-lei sobre a matéria, mas nenhum deles fora
aprovado. Mesmo que fosse possível a acusação aos antigos ministros, esta
caberia à Câmara dos Deputados, que estava dissolvida, não havendo ainda
instituição que a substituísse.
A acusação de João Franco fora já proposta ao parlamento
pelo deputado Afonso Costa, em 1908, e rejeitada por grande maioria. Visto que
a acusação fora já rejeitada pela única entidade competente para a apreciar, e
tendo em conta as outras razões, consideravam os juízes que o Tribunal da Relação
não era competente para apreciar o processo e mandavam anulá-lo.
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Afonso Costa |
A resposta do Governo Provisório abateu-se prontamente
sobre os quatro juízes que deste modo desafiavam os intentos vingativos da
República Portuguesa. Tomando a decisão de arquivamento como uma afronta à
Nação Portuguesa, decretava o governo provisório, em 21 de Dezembro de 1910,
que os prevaricadores fossem transferidos para o Tribunal da Relação de Nova
Goa.
O decreto do governo provisório abria com um longo
preâmbulo, onde era duramente atacada a atitude dos juízes, a quem se atribuíam
malévolas intenções. Tinham aqueles se insurgido “abertamente contra alguns
princípios essenciais da Republica Portuguesa, tais como: a responsabilidade
ministerial, a igualdade de todos os cidadãos perante a justiça, a
incompatibilidade absoluta entre os crimes de desvios de dinheiros públicos e
os abusos de origem ou carácter politico”. Mais ainda: “pretenderam desferir
contra ella (a república) golpes audazes, que inutilizariam a justiça na sua
própria essencia moral se pudessem ficar como regra ou mesmo sómente como exemplo”.
Tinham agido como “juízes monarchicos, impenitentes adoradores da carta, contra
os princípios essenciaes da nova Republica. Elles quizeram innocentar, libertar
dos simples incommodos das accusações criminaes, todos os ministros do antigo
regime”.
O crime dos juízes consistia, pois, em haverem proferido
uma sentença que ignorava os grandes acontecimentos ocorridos no país em 5 de
Outubro. Aqui o decreto ganha um tom doutrinário, revelando a interpretação do
governo provisório sobre o mandato que lhe fora confiado: os ministros do
governo provisório tinham sido “acclamados pelo povo e não nomeados pelo Rei”,
o que lhes dava uma autoridade superior a qualquer outro poder, mesmo o
judicial. “O Governo Provisório, tendo recebido directamente da Nação a
soberania sem limitação alguma, cabendo-lhe por isso todos os poderes do
Estado, em vez de os conservar na sua mão, como era seu direito … apressou-se a
reconhecer ao antigo poder judiciário … a plenitude da funcção de julgar”. Este
acto generoso tornava mais grave a infidelidade dos juízes aos propósitos da
república. Era o governo quem tinha autoridade para definir todos os princípios
de organização da sociedade portuguesa.“Perante o simples facto da proclamação da Republica
caiu tudo quanto na carta representava organização do Estado, agora confiada
pela Revolução, exclusivamente ao Governo Provisório e à livre vontade dos
eleitores”.
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Abel de Mattos Abreu e colegas |
Foi um
período doloroso para Abel de Mattos Abreu e família por se sobrepor à doença e
morte, a 25 de Janeiro de 1911, da sua mulher Maria José. Teria mesmo chegado a
ponderar a hipótese de não acatar o decreto. A 8 de Abril de 1911, Mattos Abreu, acompanhado dos filhos Adriana e Augusto,
parte para Nova Goa, onde chega no dia 1 de Maio, em plenas férias judiciais.
No dia 6
de Junho, é publicado em Lisboa, no Diário do Governo, um sucinto decreto
“mandando que sejam novamente colocados no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes
que do mesmo tribunal haviam sido removidos”.
E, um mês depois, a 13 de Julho,
o Supremo Tribunal de Justiça, julgando definitivamente, anula todo o processo
contra João Franco.
A 12 de Junho, após curta estadia, Mattos Abreu inicia a
sua viagem de regresso à Relação de Lisboa, por decreto de Bernardino Machado
de 6 de Junho de 1911. Aí permanecerá até 1 de Abril de 1919, quando
ascende a juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
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Bernardino Machado |
Abel de Mattos julgou sempre segundo a sua
consciência de homem livre, aplicando a lei com rigor e independência,
ignorando interesses e poderes instalados. Assim,
afrontou dois dos maiores vultos políticos do Portugal Contemporâneo:um deles, João
Franco, encarnando a Monarquia na sua última barricada, quando colocado no Tribunal do Comércio em Lisboa, onde, a 4 de
Julho de 1907, com a independência que lhe era reconhecida, negou, em sucessivas
sentenças, força legal a um decreto do Primeiro-Ministro sobre
cobranças de pequenas dívidas (os grandes devedores eram deixados em paz), que
fora promulgado em ditadura, tendo em consequência dessa decisão sido “desterrado” para a Relação
dos Açores; o outro,
Afonso Costa, encarnando a República nas suas revoltas.
A transferência dos juízes inspirou uma indignada crónica
de Fialho de Almeida, incluída mais tarde no seu livro “Saibam Quantos…”
O
autor de “Os Gatos” admirava-se da passividade com que a magistratura
portuguesa recebera esta afronta, submissamente, sem protestos.
A enorme distancia, no minúsculo território do Estado da Índia,
Soares Rebelo, advogado e antigo juiz substituto, através do seu criterioso
estudo jurídico intitulado «Um acto de Justiça imaculada», tentou analisar “num
intuito puramente científico” os dois arestos da Relação de Lisboa, apontando
as irregularidades daquele processo, que não tinha por base uma lei particular
expressamente exarada no País sobre a responsabilidade criminal dos ministros
monárquicos por actos cometidos no exercício das suas funções públicas.
O autor tem palavras de apreço e de admiração para com os
Desembargadores da Relação de Lisboa que despronunciaram os pretensos
criminosos incorrendo no desagrado dos Governantes e suportando injusta
transferência, por castigo. Presta-lhes os mais rasgados elogios pela coragem e
pelo brio com que aqueles «mais uma vez acreditaram a “independência” da
magistratura portuguesa».
Fontes:
(consultada a 05-11-2016,17:27)
http://www.centenariodarepublica.org/centenario/2008/10/09/juizes-castigados/ CarlosBobone(consultadaa05-11-2016,17:37)
Soares Rebelo, Joaquim Filipe Néry: «Um acto de Justiça
imaculada», publicado n’«A Índia Portuguesa», Orlim, ano 22.º, n.ºs 2475 e
2476, de 28 de Janeiro e 4 de Fevereiro de 1911. Vide «Soares Rebelo OBRAS
COMPLETAS», vol.II, pp.235-253, Lourenço Marques, Moçambique, 1973.
JFSR,05-11-2016
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