05 novembro 2016

O ALMOCREVE DA REPÚBLICA - JUÍZES CASTIGADOS

JUÍZES CASTIGADOS POR AFONSO COSTA

    
    Chegados ao poder, os pontífices republicanos ordenaram um processo judicial contra João Franco e outros, por “dissipação de bens públicos” e vários outros crimes. Apresentada a acusação no Tribunal da Relação de Lisboa, não encontrou acolhimento favorável. Os juízes anularam todo o processo e mandaram arquivá-lo, o que acendeu a ira do governo e teve funestas consequências na carreira dos quatro magistrados.
   A argumentação destes limitara-se a princípios gerais do direito: só se pode incriminar uma pessoa por actos definidos como crimes em lei anterior aos mesmos. Em Portugal não havia lei que determinasse a responsabilidade dos ministros pelos seus actos de governo. Várias vezes se haviam apresentado projectos-lei sobre a matéria, mas nenhum deles fora aprovado. Mesmo que fosse possível a acusação aos antigos ministros, esta caberia à Câmara dos Deputados, que estava dissolvida, não havendo ainda instituição que a substituísse.
   A acusação de João Franco fora já proposta ao parlamento pelo deputado Afonso Costa, em 1908, e rejeitada por grande maioria. Visto que a acusação fora já rejeitada pela única entidade competente para a apreciar, e tendo em conta as outras razões, consideravam os juízes que o Tribunal da Relação não era competente para apreciar o processo e mandavam anulá-lo.
Afonso Costa
   A resposta do Governo Provisório abateu-se prontamente sobre os quatro juízes que deste modo desafiavam os intentos vingativos da República Portuguesa. Tomando a decisão de arquivamento como uma afronta à Nação Portuguesa, decretava o governo provisório, em 21 de Dezembro de 1910, que os prevaricadores fossem transferidos para o Tribunal da Relação de Nova Goa.
   O decreto do governo provisório abria com um longo preâmbulo, onde era duramente atacada a atitude dos juízes, a quem se atribuíam malévolas intenções. Tinham aqueles se insurgido “abertamente contra alguns princípios essenciais da Republica Portuguesa, tais como: a responsabilidade ministerial, a igualdade de todos os cidadãos perante a justiça, a incompatibilidade absoluta entre os crimes de desvios de dinheiros públicos e os abusos de origem ou carácter politico”. Mais ainda: “pretenderam desferir contra ella (a república) golpes audazes, que inutilizariam a justiça na sua própria essencia moral se pudessem ficar como regra ou mesmo sómente como exemplo”. Tinham agido como “juízes monarchicos, impenitentes adoradores da carta, contra os princípios essenciaes da nova Republica. Elles quizeram innocentar, libertar dos simples incommodos das accusações criminaes, todos os ministros do antigo regime”.
   O crime dos juízes consistia, pois, em haverem proferido uma sentença que ignorava os grandes acontecimentos ocorridos no país em 5 de Outubro. Aqui o decreto ganha um tom doutrinário, revelando a interpretação do governo provisório sobre o mandato que lhe fora confiado: os ministros do governo provisório tinham sido “acclamados pelo povo e não nomeados pelo Rei”, o que lhes dava uma autoridade superior a qualquer outro poder, mesmo o judicial. “O Governo Provisório, tendo recebido directamente da Nação a soberania sem limitação alguma, cabendo-lhe por isso todos os poderes do Estado, em vez de os conservar na sua mão, como era seu direito … apressou-se a reconhecer ao antigo poder judiciário … a plenitude da funcção de julgar”. Este acto generoso tornava mais grave a infidelidade dos juízes aos propósitos da república. Era o governo quem tinha autoridade para definir todos os princípios de organização da sociedade portuguesa.“Perante o simples facto da proclamação da Republica caiu tudo quanto na carta representava organização do Estado, agora confiada pela Revolução, exclusivamente ao Governo Provisório e à livre vontade dos eleitores”.
  
Abel de Mattos Abreu e colegas
O Desembargador Abel de Mattos Abreu,
considerado o cabecilha do grupo de «juízes rebeldes», como foram apelidados pelos republicanos no poder, juntamente com os seus colegas Basílio Alberto Lencastre da Veiga, António Augusto Barbosa Vianna e Manuel Pereira Pimenta de Sousa e Castro,deixavam de pertencer ao Tribunal da Relação de Lisboa e eram colocados nas quatro vagas existentes no Tribunal da Relação de Nova Goa,por decreto de Afonso Costa de 21 de Dezembro de 1910, publicado no Diário do Governo n.º 66 de 1910, de 22 de Dezembro daquele ano.

Foi um período doloroso para Abel de Mattos Abreu e família por se sobrepor à doença e morte, a 25 de Janeiro de 1911, da sua mulher Maria José. Teria mesmo chegado a ponderar a hipótese de não acatar o decreto.  A 8 de Abril de 1911, Mattos Abreu, acompanhado dos filhos Adriana e Augusto, parte para Nova Goa, onde chega no dia 1 de Maio, em plenas férias judiciais. 
   No dia 6 de Junho, é publicado em Lisboa, no Diário do Governo, um sucinto decreto “mandando que sejam novamente colocados no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes que do mesmo tribunal haviam sido removidos”. 
  E, um mês depois, a 13 de Julho, o Supremo Tribunal de Justiça, julgando definitivamente, anula todo o processo contra João Franco.
   A 12 de Junho, após curta estadia, Mattos Abreu inicia a sua viagem de regresso à Relação de Lisboa, por decreto de Bernardino Machado de 6 de Junho de 1911. Aí permanecerá até 1 de Abril de 1919, quando ascende a juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.  
Bernardino Machado
  Abel de Mattos julgou sempre segundo a sua consciência de homem livre, aplicando a lei com rigor e independência, ignorando interesses e poderes instalados. Assim, afrontou dois dos maiores vultos políticos do Portugal Contemporâneo:um deles, João Franco, encarnando a Monarquia na sua última barricada, quando colocado no Tribunal do Comércio em Lisboa, onde, a 4 de Julho de 1907, com a independência que lhe era reconhecida, negou, em sucessivas sentenças, força legal a um decreto do Primeiro-Ministro sobre cobranças de pequenas dívidas (os grandes devedores eram deixados em paz), que fora promulgado em ditadura, tendo em consequência dessa decisão sido “desterrado” para a Relação dos Açores; o outro, Afonso Costa, encarnando a República nas suas revoltas. 




A transferência dos juízes inspirou uma indignada crónica de Fialho de Almeida, incluída mais tarde no seu livro “Saibam Quantos…” 


O autor de “Os Gatos” admirava-se da passividade com que a magistratura portuguesa recebera esta afronta, submissamente, sem protestos.










A enorme distancia, no minúsculo território do Estado da Índia, Soares Rebelo, advogado e antigo juiz substituto, através do seu criterioso estudo jurídico intitulado «Um acto de Justiça imaculada», tentou analisar “num intuito puramente científico” os dois arestos da Relação de Lisboa, apontando as irregularidades daquele processo, que não tinha por base uma lei particular expressamente exarada no País sobre a responsabilidade criminal dos ministros monárquicos por actos cometidos no exercício das suas funções públicas.
O autor tem palavras de apreço e de admiração para com os Desembargadores da Relação de Lisboa que despronunciaram os pretensos criminosos incorrendo no desagrado dos Governantes e suportando injusta transferência, por castigo. Presta-lhes os mais rasgados elogios pela coragem e pelo brio com que aqueles «mais uma vez acreditaram a “independência” da magistratura portuguesa».

Fontes:


(consultada a 05-11-2016,17:27)
Soares Rebelo, Joaquim Filipe Néry: «Um acto de Justiça imaculada», publicado n’«A Índia Portuguesa», Orlim, ano 22.º, n.ºs 2475 e 2476, de 28 de Janeiro e 4 de Fevereiro de 1911. Vide «Soares Rebelo OBRAS COMPLETAS», vol.II, pp.235-253, Lourenço Marques, Moçambique, 1973.
 




JFSR,05-11-2016