17 maio 2006

CITAÇÃO- EXCITAÇÃO - INCITAÇÃO - LAMENTAÇÃO...


14.05.06
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Religião: promessas e ópio?
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia




«Entendo - ou julgo entender - as promessas a Nossa Senhora de Fátima, ao Santíssimo Sacramento, ao Senhor dos aflitos ou aos santos.

Habituadas a verem a sobrevivência, a saúde e a sua vida em geral dependentes de senhores e senhoras "omnipotentes", egoístas, arbitrários e tiranos, as pessoas atiram para cima de Deus todos esses atributos. Então, como diante dos senhores deste mundo se põem de joelhos, oferecem como presente o que lhes faz falta, metem cunhas - como é que os pobres chegam a uma operação no hospital sem uma cunha? -, também fazem promessas a Deus e a Nossa Senhora, andam de rastos, oferecem sacrifícios, na esperança de que talvez desse modo Deus e a Nossa Senhora se comovam e tenham compaixão.

Num diálogo com Óscar Lopes, em 1970, no Seminário da Boa Nova, Valadares, sobre a crise da fé, D. António Ferreira Gomes, cujo centenário do nascimento se comemorou no passado dia 10, deixou um pronunciamento polémico. Referindo-se à religião de Fátima, disse: "Sabemos que para baixo de Fátima ainda há todo o culto mágico que, tomado a sério, é uma ofensa profunda a Deus, porque na realidade a magia está a embotar o sentimento religioso do povo. A magia é uma vontade de encadear, de prender as forças sobrenaturais, consideradas mais como malignas do que como benéficas. Ora, isto, em relação à religião cristã, é a maior ofensa que se pode fazer a um Deus de bondade. Mas nós lidamos com isto, lidamos com a religião utilitária, do 'dou para que dês'. Eu prometo, eu faço uma promessa para que Deus me faça isto ou aquilo. Faço um negócio, um contrato. E para quê? Evidentemente, para a vida, para a saúde, para o dinheiro, para isto tudo. Ora, isto, com muita piedade e muita fé no nosso povo, isto não é religião cristã de forma nenhuma."

Já antes, no início da sua intervenção, o então bispo do Porto - voltar ao seu pensamento é homenageá-lo no melhor sentido - referira que tinha uma definição de fé que achava muito boa. Ela encontrava-se numa cartinha breve em que Óscar Lopes lhe dizia que a sua participação na Mesa-Redonda (houve outros participantes, como Luís Moita e Bento Domingues) seria "um depoimento na primeira pessoa do singular acerca daquilo que durante 50 anos julgo ter crido a partir dum fervoroso catolicismo de infância. Apenas desejaria descobrir o melhor de mim mesmo no melhor catolicismo de hoje, e contribuir para tudo aquilo que deveras nos transcende". D. António comentou: "Eu tenho para mim que quem procura pôr-se deveras em relação com aquilo que nos transcende está numa atitude religiosa." E, voltando-se para Óscar Lopes: "Desculpe, senhor doutor, se o ofendo." E Óscar Lopes: "De modo nenhum!"

D. António constatou: "Nós sabemos que a maior parte da nossa boa gente não transcende." E estava completamente de acordo com Óscar Lopes, ao referir a palavra de Marx sobre a religião, ópio do povo. "Segundo me pareceu, disse que Marx foi transformando um pouquinho o seu conceito, mas não penso que precisasse de reformá-lo, pois a religião é realmente muitas vezes ópio para o povo. A religião pode realmente ser ópio do povo. Não é uma palavra de insulto. Evidentemente, não é uma palavra ofensiva na medida em que se não refere ao cristianismo nem a Cristo que continua vivo no Espírito. Mas, repito, muitas vezes para o povo a religião no geral não significa nada de transcendente."

A atitude religiosa aparece, portanto, no movimento do transcender do homem para o transcendente. Onde se encontra então o que é próprio do cristianismo?

D. António afirmou que poderíamos adoptar a linguagem de Bonhoeffer, o teólogo protestante mártir do nazismo, e aceitar que o cristianismo não é religioso, na medida em que o Deus revelado em Cristo não serve para nos solucionar problemas insolúveis e os homens têm de arranjar-se autonomamente sem apelarem para Deus.

O Deus cristão não é ópio nem um deus ex machina com que se negoceia promessas. Ópio e promessas - isso é o religioso que está para baixo. "A religião cristã, entretanto, o limiar diferencial da religião cristã começa quando alguém se debruça sobre o outro, quando alguém se volta para o que o transcende, seja o outro neste mundo, seja Deus enquanto o Outro absoluto, sabendo que a relação ao Outro absoluto é exactamente também a relação ao irmão."

O amor a Deus e o amor ao próximo são um só e têm de exprimir-se também na política. "Nenhum homem responsável da Igreja poderá dizer que não quer saber de política ou que nada percebe de política."»

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Viva !

2:38 da manhã  

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