15 maio 2006

AD PERPETUAM REI MEMORIAM - Humberto Delgado


HUMBERTO DELGADO
«O INFELIZ AMOR DE SÓROR MARIANA»

Nesta data em que se completam cem anos sobre o nascimento de Humberto Delgado, "O General Sem Medo", sobre o qual tanto se escreveu, no que toca à sua trajectória política, em especial o fenómeno, que abalou a sociedade portuguesa da época, da sua candidatura às eleições presidenciais de 1958, vimos relembrar uma outra sua faceta, a de escritor.

Solidário numa primeira fase com a designada Revolução Nacional, na sequência do golpe militar de 1926, é da sua autoria uma peça de teatro radiofónico (1939) intitulada «28 de Maio», da qual ofereceu um volume a Salazar, com dedicatória de seu punho e letra em que designa o Presidente do Conselho como “cúpula da palpitação revolucionária e patriótica do Povo Português”.
Além de obras respeitantes a assuntos de índole militar,em particular relacionados com a Força Aérea,é também autor de diversas peças de teatro,como «A Marcha para as Índias»(1940), «Mariana Alcoforado, a freira de Beja» (1940) e «Asas» (1942).

Já no seu exílio no Brasil, publicou (1964) «O Infeliz Amor de Sóror Mariana», sob a chancela da Editôra Civilização Brasileira S.A., do Rio de Janeiro, obra que inclui a história dos amores e das cartas da famosa freira de Beja, o texto francês e a traduçaõ portuguesa dessa obra-prima da literatura europeia do século XVII, a grafanálise de um documento do punho de Sóror Mariana, e a peça de teatro radiofónico escrita pelo autor.
Quis o acaso que se nos deparasse numa banca de alfarrabista a referida edição brasileira, apesar da sua relativa raridade(1).
Nas dobras das respectivas capas, consta uma breve apresentação crítica, subscrita pelo director editorial Mário da Silva Brito, de que não resistimos a efectuar a transcrição (mantendo, todavia, a ortografia original):


"Um general que dá exemplo de amor à cultura
Humberto Delgado foi candidato à Presidência da República Portuguêsa, tendo sido "derrotado" em virtude das fraudes inerentes ao sistema eleitoral salazarista.
Pouco tempo depois, sentindo-se inseguro em sua liberdade e até em perigo de vida, buscou asilo na Embaixada do Brasil, criando então o famoso "affaire" diplomático em que se houve com tanta dignidade e altanaria o escritor Álvaro Lins, na ocasião nosso Embaixador junto ao govêrno de Portugal (2).
Êsse o Humberto DELGADO conhecido pela generalidade das pessoas. Sua atividade política e, especialmente, sua luta pelo restabelecimento das franquias democráticas em sua pátria, tornaram-no nome de fama internacional e, mais do que isso, símbolo do movimento libertador do povo português.
Mas além de General da Fôrça Aérea, homem de ação de rara bravura, e de espírito preocupado com os problemas humanos e o progresso social, Humberto DELGADO é escritor de vasta bibliografia, destacando-se como autor de peças teatrais, de textos para declamação radiofônica e diversos e importantes trabalhos de literatura militar, notadamente sôbre tática e estratégia.
Mesmo quando aborda assunto aparentemente gratuito, de mera literatura ou erudição -como é o caso dêste livro O Infeliz Amor de Sóror Mariana - está presente o intelectual engajado, o escritor que zela pelos valôres artísticos de sua terra, o homam atualizado com as grandes e generosas coordenadas do pensamento moderno, que permitem analisar temas e problemas em têrmos de amplitude, banindo-se os ângulos mesquinhos ou estreitos.
Complexo é o trabalho de Humberto DELGADO neste livro. Estuda êle o problema da autoria das cartas que uma religiosa portuguêsa - Mariana Alcoforado - dirigiu ao oficial francês, Cavaleiro de Chamilly, que, após ter sido seu amante, aproveitando-se de sua fraqueza de mulher, abandonou-a deixando-a entregue ao sofrimento e exposta aos rigores da moral farisaica.
Adota o ensaísta a tese clássica, luso-francesa, de ser a Freira de Beja a escritora das cartas. Rebate, assim, os argumentos dos que pretendem apontar outros autores, e de outra nacionalidade, com isso lesando o patrimônio cultural português, que tem, nas cartas de Sóror Mariana, uma das mais belas e significativas obras da literatura do século XVII.
Discute ainda - e pulveriza-as - as objeções reacionárias e tartufas que, em nome de preconceitos morais, religiosos, políticos e aristocráticos, põem em dúvida a autenticidade das cartas, o portuguesismo de sua contextura estilística, e, inclusivé, a existência da autora. Faz mais o polemista Humberto DELGADO: em página rica de informações e de crítica, disseca a situação da mulher mo evolver da sociedade e demonstra, apoiado em argumentos históricos, a sujeição e a submissão que lhe tem sido imposta em nome de uma moral hipócrita e atrasada.
Êste fascinante livro do político e militar português, revela o seu acendrado amor às coisas do espírito e da cultura, o patriotismo e a largueza de idéias que informam a sua personalidade de intelectual. São qualidades que merecem sempre ser realçadas. Mais: exalçadas. São mesmo edificantes e oxalá inspirem a outros políticos e militares igual respeito e aprêço pelos valôres éticos, culturais e civilizadores de suas pátrias e povos
."


(1) Durante o seu exílio no Brasil, o General Humberto Delgado escreveu uma peça de teatro, que publicou com um pormenorizado estudo, em 1964, sob o título O Infeliz Amor de Soror Mariana . Esta obra reveladora da sensibilidade do “General Sem Medo” é hoje de difícil acesso, tendo-nos sido facultada por Leonel Borrela, coleccionador “Alcoforadino” de Beja , a quem agradecemos.
«Mariana Alcoforado e o‘Amor Português’ na Ficção Actual em Língua Inglesa»,Luísa Alves(F.C.S.H. – U.N.L.)
www.fcsh.unl.pt/congressoceap/Mariana_luisaalves.doc

(2) Vide «Missão em Portugal», Álvaro Lins; Centro do Livro Brasileiro, Lisboa, 1974.