17 maio 2006

CITAÇÃO - EXCITAÇÃO - INCITAÇÃO - LAMENTAÇÃO...


PÚBLICO DOMINGO14MAI2006
OLHO VIVO

PADRES E LOBOS POLÍTICOS,
Eduardo Cintra Torres

«Pela primeira vez, a televisão portuguesa apresenta em simultâneo duas séries de ficção a partir de clássicos da literatura, "O Crime do Padre Amaro", de Eça de Queirós (SIC, sábados), e "Quando os Lobos Uivam", de Aquilino Ribeiro (RTP 1, sextas). Tendo em conta a aversão dos operadores em adaptar a literatura, em especial a que recrie ambientes do passado, estas transposições simultâneas no ecrã devem-se por inteiro à qualidade das obras originais. Distando 75 anos entre si, "O Crime" e os "Lobos" saíram das penas de dois expoentes do romance no período 1870-1960.
Antes de passar às adaptações, convém relê-los, não para entrar no dúbio jogo do ganha e perde, mas para ver o que atraiu os autores das versões televisivas. Eis a primeira constatação, tão óbvia que é mesmo preciso dizê-la: são dois romances com narrativas avalassadoras, personagens fortes e espirais de acção imbuída do seu tempo. As duas produções procuraram evitar o problema maior da ficção no cinema e na TV de hoje, o dos argumentos.
Segunda constatação: os grandes autores portugueses têm sido muito políticos na ficção.Estes dois romances são altamente politizados, são motivados por questões políticas (se consideramos que "a questão religiosa" na segunda metade de oitocentos se inscrevia totalmente na política).
Grande número de novelas e romances de Eça, Camilo e outros autores do mesmo período literário e do seguinte (Teixeira de Queirós, Abel Botelho, Carlos Malheiro Dias, Forjaz de Sampaio, Branquinho da Fonseca, Manuel Ribeiro, Ferreira de Castro, Rodrigues Miguéis)tratam directamente de grandes questões políticas ou sociais. O mesmo sucede com obras da segunda metade do século XX e já do presente século, de Cardoso Pires, Agustina, Lobo Antunes ou Saramago, autores que, ao contrário de outros, não se perderam no labirinto dos seus "selves".
(...)O "Padre Amaro" trata da questão religiosa numa época em que o catolicismo era religião de Estado, do peso asfixiante da igreja numa cidade de província, da hipocrisia da beatice, do oportunismo do mau clero.
(...)A vida política dos anos 70 atravessa o romance. Eça não poupa a Regeneração nem os opositores socialistas. No final, Amaro, esquecido já o seu crime perfeito, goza uma tarde maravilhosa no Chiado - e Paris a ferro e fogo com a Comuna. Neste romance, Portugal não tem solução.
Aquilino, 75 anos depois, como que diz o mesmo nos "Lobos". Surpreende neles a forte dimensão política, a denúncia das prepotências do Estado, a corrupçãozinha, o obscurantismo da pide, o servilismo político do sistema judicial. Tal como o "Padre", os "Lobos" não são um romance sobre a política, mas ela perpassa-os.»