22 maio 2006

NO REINO DE "BIBLOS" (3)- "A Muralha e os Livros",Jorge Luís Borges

A MURALHA E OS LIVROS”, JORGE LUÍS BORGES

A prática de destruir livros perigosos ou apenas incómodos é muito antiga e foi partilhada por diversas civilizações e culturas.
«O oriente também se encontra envolvido na metaforologia do fogo. Jorge Luís Borges, o erudito escritor argentino que atravessou quase todo o século XX e abordou mais do que uma vez as conflagrações na sua obra, escreveu uma breve parábola dedicada ao tema – que seria agora escusado designar como heraclitiana, tal a sua evidência – do intercâmbio permanente entre as coisas e o fogo. Em “A muralha e os livros”, Borges parte de uma narrativa sobre o imperador chinês Shih Huang Ti, responsável quer pela ordem de construir a imensa muralha da China, quer pela de queimar todos os livros anteriores ao seu império, para sugerir uma meditação sobre o sentido desses dois actos – o de construir e o de incendiar – que, segundo a sua interpretação, se invalidam de modo imperceptível.
Sendo prerrogativa comum dos príncipes reduzir a cinzas livros e erigir fortificações, o imperador chinês só se terá distinguido pela escala gigantesca em que operou: queimar toda a memória escrita anterior ao seu domínio e cercar, não uma quinta ou um jardim, mas todo um vasto império. Na sua narrativa, Borges relata-nos que muitos dos que tentaram salvar livros, subtraindo-os ao fogo, foram pelo fogo marcados através de ferros em brasa e condenados a erguer até ao último dos seus dias a enorme muralha chinesa.
O escritor interroga-se então se a edificação da fortaleza não deve ser vista como uma metáfora ou um desafio. Tomada como metáfora, os que tentaram salvar os livros foram sujeitos à condição de Sísifo: por persistirem na luta contra o oblívio e pelo cultivo da memória, foram condenados, nas palavras de Borges, “a uma obra tão vasta como o passado, tão torpe e tão inútil”. Vista como desafio, amuralha manter-se-ia intacta até que viesse um outro imperador que a destruísse tal como Shih Huang Ti queimou os livros anteriores ao seu reinado; mas esse futuro príncipe, que assim apagaria a recordação do passado, seria afinal, sem que o saiba,apenas a sombra e o espelho do seu antecessor


In: "Media & Jornalismo", CIMJ, nº1, Ano 1, 2002, pp. 129-141.
"O Fogo e a Cultura Pan-Mediática Contemporânea", José Luís Garcia
http://www.ics.ul.pt/corpocientifico/joseluisgarcia/papers/fogo_media_jorn.pdf