22 maio 2006

NO REINO DE "BIBLOS" (6)- «Fahrenheit 451»,uma distopia tornada realidade?

“FAHRENHEIT 451”, Ray Bradbury


«Ray Bradbury nasce em 1920, em Waukegan, Illinois (EUA). Em 1939, em Los Angeles, funda uma pequena revista de ficção científica, juntamente com outros apaixonados do género. Começa a escrever contos, enviando-os para revistas especializadas que, frequentemente, os publicam.
Em 1950, publica o seu primeiro volume de contos, “Crónicas Marcianas”, que tem um grande sucesso, depois suplantado por “Fahrenheit 451” (1953). A partir dos anos sessenta, começa a trabalhar intensamente como argumentista cinematográfico, não abandonando, contudo, a literatura. Entre as suas numerosas obras, destacam-se: “O Homem Ilustrado” (1951), “Os Frutos Dourados do Sol” (1953), “O País de Outubro” (1955), “A Cidade Fantástica” (1957), “As Máquinas da Alegria” (1964), “Muito Depois da Meia-Noite” (1976), “A Morte é um Acto Solitário” (1984), “Memórias do Crime” (1984) e “Cemitério de Lunáticos”(1990).
O cosmos literário de Ray Bradbury parece pautar-se pela criação e busca incessante de universos paralelos ou alternativos ao que conhecemos. A sua apetência pela ficção científica e o facto de a sua formação académica não ter ido além do ensino secundário parecem ter feito dele uma espécie de génio autodidacta, adquire uma série de conhecimentos que lhe permitem reflectir sobre o que o rodeia, criando e imaginando sociedades e ambientes fantásticos.
O mundo dos anos 50 tinha ainda muito frescos na memória os horrores da Segunda Guerra Mundial, do Holocausto e das duas bombas atómicas lançadas sobre o Japão. O avanço tecnológico era já uma realidade e a televisão tornava-se, com sucesso, um entretenimento muito popular. É neste contexto que surge “Fahrenheit 451”. Cinquenta anos depois, esta obra de Bradbury parece fazer ressoar nas nossas mentes uma espécie de profecia, prestes a ser cumprida.
“Fahrenheit 451” é uma novela de ficção científica, e pode ser incluída no rol de narrativas distópicas contemporâneas. A primeira metade do século XX é muito fértil neste tipo de narrativa, que se caracteriza, (no essencial e tal como o nome indica), pela descrição de um lugar ou situação imaginários em que tudo é negativo, por oposição ao conceito de utopia.
(...)Em termos gerais, as narrativas utópicas tratam de modo optimista os temas da condição humana, do progresso e do futuro da Humanidade. No entanto, e citando Robert Elliott, “A utopia de uns é o pesadelo de outros”, pelo que são precisamente as características da utopia que engendram o seu oposto - a distopia.(...) É assim que surgem as amargas narrativas distópicas, como um grito de alerta para os perigos de um futuro mundo opressor, desolador e sem esperança, em que o interesse particular é inevitavelmente esmagado pelo interesse colectivo e em que as massas devoram o indivíduo. Como exemplos de outras narrativas distópicas do século XX, temos: “Nós” (1922), de Eugene Zamyatin, o “Admirável Mundo Novo” (1932), de Aldous Huxley, e “1984” (1948), de George Orwell.
A obra abre com uma curta explicação sobre o seu título. Numa frase, o autor explica que Fahrenheit 451 é “a “temperatura a que um livro se inflama e consome…”.
“Era um prazer muito especial ver as coisas arderem, vê-las calcinar-se e mudar”. É assim que nos é apresentado Guy Montag, um bombeiro que, em vez de apagar fogos, os ateia sobre livros e que desempenha esse papel com bastante prazer. O governo proíbe a posse e a leitura de livros, e uma nova tecnologia permite a construção de casas ”ignífugas” (à prova de fogo) - daí a nova função atribuída aos bombeiros. A acção decorre num futuro indeterminado, numa cidade situada algures nos Estados Unidos da América.
(...)“Fahrenheit 451” aborda de forma notável o potencial criador e ao mesmo tempo destruidor do homem para com o mundo que o rodeia e para com o seu semelhante. É sobretudo interessante acompanhar o percurso da personagem principal, Guy Montag.(...)Certa noite, ao regressar do trabalho, conhece Clarisse Mclellan, uma adolescente que é sua vizinha. Clarisse abre os olhos de Montag para um mundo totalmente novo. Além de ser considerada como anormal e louca pela sociedade, é também considerada “anti-social” pelo governo e proíbem-na de frequentar a escola. Fica intrigado com a personalidade da jovem, mas começa a gostar do seu olhar fresco e novo sobre o mundo, e a reexaminar a sua vida. Habitua-se à sua presença e às suas ideias, até que um dia ela não aparece, descobre, mais tarde, que ela tinha sido morta.
Montag revolta-se e começa a questionar os fundamentos da sua sociedade. Encontra-se com Faber, um professor de literatura reformado e procura uma forma de começar a espalhar livros. Vê-se forçado a confrontar o seu capitão Beatty, que tenta confundi-lo e pô-lo de novo do lado dos bombeiros, percebe que aquele sabe dos livros e vê-se forçado a fazer decisões sobre a sua vida, à medida que esta se desmorona, estrondosamente, à sua volta. Tudo isto tem como pano de fundo a ameaça de uma guerra nuclear iminente.
O cenário aqui desenhado é um dos mais inquietantes jamais concebidos pela ficção científica – sem seres alienígenas, naves espaciais ou armas mirabolantes, aquele mundo lívido e opressivo que deveria garantir o bem-estar universal assalta-nos como se pudesse, um dia destes, olhar para nós e envolver-nos na sua espiral de
controlo, perseguição e terror
.
O
controlo
é exercido por um governo que promove o entretenimento como forma de vida, anulando todo o apetite do espírito.
As pessoas não têm tempo para pensar, não conversam umas com as outras nem contactam com a natureza. Em vez disso, passam horas em frente à televisão, cuja programação, de tipo interactivo, é projectada nas paredes das casas; têm constantemente introduzida nos ouvidos uma espécie de micro rádios e conduzem carros a altas velocidades, nas auto-estradas, para descontracção.
É também promovido o desporto e todo o tipo de competições; proliferam as fitas desenhadas, os filmes, os “comic-books”, as revistas eróticas a três dimensões, os jornais corporativos. Os livros começam a ser resumidos gradualmente, até não restarem mais do que um punhado de linhas – desta forma nivelam-se os conteúdos e garante-se uma igualdade artificial, em que nenhuma minoria sinta os seus interesses ameaçados. Nas escolas, os alunos são submetidos a várias horas de programas televisivos “educativos”, intercalados com aulas de desporto e transcrições de história ou pintura; as pessoas tomam constantemente doses excessivas de comprimidos para dormir e há relatos de várias tentativas de suicídio.
Bombardeadas com tanta informação e tanta actividade inútil, mas que dão a falsa sensação de “movimento”, as pessoas, na realidade “apenas se arrastam”. Foram moldadas ao sistema, estão conformadas, não questionam nada, pois têm a falsa sensação de uma vida preenchida e feliz. Neste cenário, os livros deixaram espontaneamente de ter leitores – para quê atormentar o espírito com dúvidas existenciais, com assuntos filosóficos, com estudos sociológicos, com poesia melancólica, com romances cheios de personagens imaginárias que não existem na realidade? Os livros são vistos com fonte de sofrimento, pois obrigam a pensar e estão cheios de contradições - factos insuportáveis para um espírito habituado à mínima actividade autónoma possível, embriagado, numa espécie de hipnose colectiva. A personagem de Mildred, a mulher de Montag, e as suas amigas, encarnam na perfeição este cidadão-tipo, célula da grande massa anónima, que não questiona, não protesta, pelo contrário, está “feliz” com o actual estado de coisas.
A dada altura, é institucionalizada a proibição de possuir ou de ler livros. Entra em acção a
perseguição da “Vigília do Fogo”, cuja missão é “proteger o optimismo do nosso mundo actual.” Uma das ideias principais que a obra destaca é a da desintegração cultural da sociedade, o crescente desinteresse na ciência, na literatura e na filosofia – a combustão dos livros fica como uma metáfora poderosíssima desta degradação - “O fogo é brilhante, o fogo é limpo.” O fogo simboliza assim a morte da cultura.
O terror acaba por nascer nos corações das pessoas que conseguem conservar a sua lucidez, neste cenário de histeria colectiva – vislumbramos o terror de Clarisse quando descreve as actividades abomináveis dos seus concidadãos, vemos o terror nascer dentro de Montag, quando este decide não fazer mais parte da engrenagem, assistimos também ao terror estupidamente calmo que emana da personagem Helen – a mulher que se faz imolar pelo fogo, dentro da sua própria casa repleta de livros.
(...)Se o propósito do autor ao escrever esta obra era o de propor uma reflexão sobre o mundo em que vivia e alertar as gerações vindouras para os potenciais perigos de pessoas menos bem intencionadas subirem ao poder, manipulando os media e controlando as massas, tal foi magistralmente conseguido. É impossível lermos “Fahrenheit 451” e não traçarmos paralelos com o mundo em que vivemos hoje.
(...)Quanto à profética morte da cultura, materializada no desaparecimento dos livros, é exagerada. Embora existam, especialmente desde o aparecimento da
Internet, várias correntes que, qual arautos do mundo moderno, anunciam que os livros estão irremediavelmente condenados à extinção, o que é certo é que os novos meios tecnológicos têm contribuído para grandes avanços da liberdade de expressão, da participação do indivíduo no espaço público e da divulgação e transmissão de conhecimentos. Basta uma pequena pesquisa na Internet para ver a quantidade de sites
com qualidade, dedicados à literatura ou aos movimentos de cidadania, só para citar dois exemplos.»
(...)

FONTE:
Cláudia Silva, "Fahrenheit 451" - Recensão Crítica
http://iluminadas.weblog.com.pt/arquivo/2005/01/fahrenheit_451.html